Clinio de Oliveira Amaral e João Guilherme Lisbôa Rangel


A IDADE MÉDIA ENCANTADA DOS ARAUTOS DO EVANGELHO ANALISADA ATRAVÉS DO MEDIEVALISM


Introdução
O período compreendido entre o século V e o século XV, chamado idade média, foi e continua sendo, desde o século XIV, apropriado/reelaborado de diferentes formas. O retorno ao medievo, ocorrido no último quarto do século XX, segundo Paul Zumthor, deve-se, apesar da alteridade, ao fato de que este período seja apreendido como a base da sociedade contemporânea. Sustenta-se que, para além desse argumento, trata-se de uma “base” em um contínuo processo de reinvenção, sobretudo, a partir do século XXI. Assim, a perspectiva por meio da qual este ensaio foi redigido compreende o relato hagiográfico de são Raimundo de Peñafort  – publicado no site institucional dos Arautos do Evangelho (https://www.arautos.org/) – como “medieval”. Esta instituição, deliberadamente, utiliza-se do medievo com o propósito de autolegitimar e autossacralizar a sua ação evangelizadora.

Portanto, defende-se a hipótese de que, em uma cultura marcada pelo cristianismo como a brasileira, a utilização de uma estratégia discursiva, pautada em uma narrativa de volta ao medievo, confere legitimação a quem a profere. Assim, utilizar-se-á a teoria do medievalism que pode ser definida, entre outras formas, pela apropriação e pela recepção feita do medievo. E, segundo Francis Gentry e Ulrich Müller, um dos quatro modelos distintos de recepção medieval é, especificamente, a “political-ideological reception of the Middle Ages” significando como: “medieval works, themes, ‘ideas’ or persons are used and ‘reworked’ for political purposes in the broadest sense, e.g., for legitimization or for debunking (in this regard, one need only recall the concept ‘crusade’ and the ideology associated with it)” (Gentry  and  Müller 1991).

Algumas informações sobre os Arautos do Evangelho
Segundo a própria descrição do grupo, os Arautos do Evangelho são uma associação internacional privada de fiéis para o direito pontifício (http://www.arautos.org/secoes/arautos/quem-somos/Arautos-do-Evangelho-136523) que foi reconhecida pela Santa Sé em 22/02/2001; está presente em 57 países espalhados pelo mundo, tais como EUA, Canadá, Itália, África do Sul, Brasil(local de origem), Argentina, Chile, Hungria, entre outros.

Os Arautos, como são reconhecidos, foram fundados pelo Monsenhor João Clá que possui doutorado em direito canônico pela Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino, de Roma e em Teologia pela Universidade Pontifícia Bolivariana de Medellin. Assumidamente de orientação teológico “tomista”, Mons. João Clá também fundou o Instituto Filosófico Aristotélico Tomista (IFAT) e o Instituto Teológico São Tomás de Aquino, assim como o Instituto Filosófico-Teológico Santa Escolástica, para o ramo feminino (http://www.joaocladias.org.br/curriculum.asp).

Em sua maioria, os membros dos Arautos não professam votos, à exceção dos que seguem o sacerdócio, permanecendo leigos. Além disso, existem os “cooperadores” que aderem a diretriz espiritual, político e filosófica da associação, mas permanecem com suas atribuições profissionais e cotidianas.

Como síntese de sua “missão” e de sua finalidade, os Arautos, em um dos primeiros artigos do seu estatuto, afirmam que:

“Esta Associação (…) nasceu com a finalidade de ser instrumento de santidade na Igreja, ajudando seus membros a responderem generosamente ao chamamento à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade, favorecendo e alentando a mais íntima unidade entre a vida prática e a fé. (…) Além disso, a Associação tem como fim a participação ativa, consciente e responsável de seus membros na missão salvífica da Igreja através do apostolado, ao qual estão destinados pelo Senhor, em virtude do Batismo e da Confirmação. Devem, assim, atuar em prol da evangelização, da santificação e da animação cristã das realidades temporais”(http://www.arautos.org/secoes/arautos/quem-somos/Arautos-do-Evangelho-136523).

No que se refere à “evangelização”, os Arautos utilizam-se de atividades artísticas e culturais, sobretudo, relacionadas à música, bem como atividades intelectuais, tais como a publicação de revistas e de artigos online. Dentre estes artigos, publicados em forma de pequenas hagiografias, destacam-se os referentes aos santos de origem medieval. Devido aos limites deste ensaio, optou-se por analisar duas destas hagiografias, analisadas a seguir.

O uso da santidade medieval: as hagiografias de são Raimundo de Peñafort
Definir uma hagiografia apenas como escritos que tratam dos santos ou da santidade é um simplismo, o seu estudo está para além do culto aos santos (Philippart 1998: 11). Ao se escrever sobre as hagiografias, mencionam-se as vidas dos santos e as paixões (Vita/Passio). Contudo, não são os únicos tipos existentes, pois são conhecidas através de calendários, martirológicos, inscrições, livros litúrgicos, litanias, hinos, iconografias etc. (Gaiffier 1977: 140). Embora a hagiografia não seja um gênero literário particular, apresenta especificidades, porque as vidas são baseadas no modelo de Cristo e em outros modelos bíblicos (Goullet 2004: 8-22). Elas não podem ser vistas como algo “realista”, mas devem ser entendidas como um modelo a ser seguido, considerando a edificação. 

Ao modelo bíblico e de Cristo, base “imóvel” da hagiografia medieval, é acrescentado um ideal de santidade que varia segundo a época. Para cada período histórico, seria possível delimitar uma série de topoi recorrentes ao discurso de santidade. Tais lugares-comuns são estereotipados, e, no caso da santidade medieval, considera-se a existência dos modelos, infra, em torno dos quais a narrativa era elaborada. Os hagiógrafos davam ênfase em um ou mais elementos, mas, no caso do medievo, as temáticas giram, frequentemente, em torno dos seguintes estereótipos:

1) O nascimento como fruto da vontade de Deus;
2) O nascimento, geralmente, está envolto no maravilho, como, por exemplo, a presença de sinais providenciais;
3) O santo é um precoce do ponto de vista intelectual e espiritual;
4) Frequentes complôs do diabo, que sempre tenta desviar o santo do seu caminho (geralmente, o diabo encarna-se em pessoas, e.g., inimigos dos santos);
5) O santo é dotado de virtudes, são uma espécie de catálogo de virtudes;
6) A exemplaridade da sua vida é incontestável, expressa por atos concretos tais como a caridade, a esmola e, principalmente, os milagres, que revelam a virtude ou o poder dos santos de conseguirem obter junto a Deus a realização de fatos sobrenaturais;
7) Passam por humilhações, sofrimentos, rebaixamentos: têm uma espiritualidade caracterizada pela dualidade entre o corpo, o espírito e pelo caráter transitório das coisas;
8) Há, às vezes, uma tensão entre as solicitações do mundo e o desejo de retirar dele;
9) O santo é, frequentemente, avisado da sua morte por uma visão (Goullet 2004: 17-18).

Dos elementos relacionados acima, os itens 1, 3, 5 e 7 encaixam-se, perfeitamente, à vida de são Raimundo relatada no site dos Arautos do Evangelho, além de se poder ainda relacionar a sua vida à de várias hagiografias medievais de membros da ordem dominicana, devido à grande ênfase data em sua erudição, usada na conversão e no combate às heresias. Outrossim, é importante destacar que, no medievo, não havia uma perspectiva crítica em relação às vidas narradas. Assim, os elementos de uma religião encantada, mágica e maravilhosa pululam nas hagiografias desse período. Notou-se a mesma perspectiva acrítica nas hagiografias publicadas pelos Arautos do Evangelho.

Especificamente, no que diz respeito às hagiografias publicadas pelos Arautos sobre Raimundo de Peñafort, consideram-se os dois artigos expostos no site referente à sua “vida”. Em razão dos objetivos deste ensaio, não se realizará uma análise comparativa entre eles; ao contrário, estes serão tomados em conjunto a fim de investigar a construção e elaboração discursiva contemporânea que se formula em relação à idade média, sobretudo, no que se refere às apropriações do medievo para legitimar esta associação.

O início da hagiografia de são Raimundo mantém os topoi das hagiografias medievais. Trata-se de um santo de beata estirpe (Vauchez, 1974: 398), filho dos reis de Aragão, que, desde a infância, aparece predestinado mediante sua vocação para o “estudo e oração”, como também de sua linhagem.Ora, trata-se de um santo dominicano, portanto, afeito ao ensino. Outra característica importante que as hagiografias ressaltam, é a sua “genialidade”, pois, com apenas com 20 anos, já era professor de artes livres em uma universidade em Barcelona.

Dando continuidade ao relato de Raimundo de Peñafort, um novo topos, da santidade da baixa idade média, é utilizado na narrativa. Enfatiza-se a sua relação com a pobreza; ele é apresentado pelos Arautos como alguém que jamais se esqueceu dos pobres e que sempre cuidou pessoalmente deles. Além disso, as suas características como professor, erudito e defensor da ortodoxia são sempre reafirmadas pela narrativa.Esses aspectos são fundamentais, uma vez que servirão de base para sua ação evangelizadora, cujo resultado foi a conversão de muitos “árabes e judeus”.

Por volta de 1220, são Raimundo foi convocado para ser confessor do então papa Gregório IX.  Nesta parte do relato, é apresentada a importância, exercida por este santo, junto à promoção do direito canônico, através de sua atuação na redação das “Decretais de Gregório IX”. Ora, esta ênfase não é obra do acaso, pois, em sua formação, João Clá, era um doutor em direito canônico. Conforme o texto destaca, estas são importantes para o direito canônico até os dias de hoje. Ou seja, há o estabelecimento direto de uma continuidade entre o legado do santo medieval e o presente representado pela trajetória e pela atuação intelectual dos Arautos, através do direito canônico, visto como um patrimônio da Igreja, estabelecido no medievo, a vida de são Raimundo une-se à de João Clá.

O 1º Artigo não apresenta a data certa de entrada do santo na ordem dominicana,já o 2º afirma que foi em uma Sexta-feira Santa de 1222. Além disso, ambos relatam que Raimundo foi eleito superior geral da Ordem. Independentemente, da questão da data, destaca-se o peso simbólico da data da Sexta-feira Santa para o contexto do cristianismo, grosso modo, representa uma passagem e um renascimento.Após percorrer todos os conventos dominicanos a pé (prática comum desta ordem no medievo, porém, na forma como isso foi relatado pelo site dos Arautos, nota-se uma intenção de se utilizar da função exemplar do santo, tal como na idade média), são Raimundo retira-se a fim de “se dedicar à vida solitária de orações e penitência” (http://www.arautos.org/secoes/servicos/santodia/sao-raimundo-de-penafort-139968), mas permanece sempre atendendo aos pobres. Como recompensa, a sua fama de santidade, bem como os dons dados por Deus aumentam cada vez mais.

No final do Artigo 1, a narrativa dos Arautos retoma uma série de aspectos essenciais das hagiografias medievais, notadamente, das obras dominicanas do século XIII, como, por exemplo, a “Legenda Áurea” (mais notável entre todas as compilações de santos do medievo em função de sua imensa popularidade), cita-se:

“Por inspiração, aos setenta anos, Raimundo voltou ao ensino. Fundou dois seminários onde o ensino era dado em hebraico e árabe, para atrair judeus e mouros ao Cristianismo. Em pouco tempo, dez mil árabes tinham recebido o batismo. Foi confessor do rei Jaime de Aragão, ao qual repreendeu pela vida mundana desregrada. Também o alertou sobre o perigo que o reino corria com os albigenses, facção da seita dos cátaros, que estavam pregando uma doutrina contrária e desta maneira conseguiu que fossem expulsos. Era um escritor valoroso, a sua obra, ‘Suma de Casos’, continua sendo usada pelos confessores”.(http://www.arautos.org/secoes/servicos/santodia/sao-raimundo-de-penafort-139968).

Aqui, elementos como: ensino, evangelização, combate aos “heréticos”, apresentados somente pelo nome, conversão de árabes e judeus, bem como embate com o poder temporal são retomados, finalmente, o rei Jaime é repreendido porsão Raimundo. O artigo 2 também apresenta tais elementos, contudo, no que se refere à relação entre o rei Jaime e são Raimundo, mais detalhes são apresentados. Menciona-se que Jaime era senhor da ilha de Maiorca, localizada a 360km de Barcelona. Este convida Raimundo para uma viagem até a ilha, todavia, durante a viagem, o “procedimento moral” do rei deixava a desejar e, por isso, Raimundo o repreendia a ponto de exigir que se parasse o barco para que ele, pela fé, pudesse descer e caminhar sob as águas tal como Pedro.

O rei, no entanto, não consente e ameaça o santo de modo que, ao chegar a ilha de Maiorca, este último passou a ser constantemente escoltado. São Raimundo, todavia, pede para caminhar sozinho na praia quando tal situação é apresentada:

“Sob o olhar estupefato dos soldados, ele estendeu seu escapulário de lã sobre as águas do mar, e nele ‘embarcou’. Após agasalhar-se com parte de seu manto, içou a outra ponta ao seu bastão, constituindo uma vela. O resto… foi só invocar o santo nome de Maria, a Senhora dos ventos, de quem era fiel devoto. Um sopro suave, mas veloz, impulsionou o veleiro de Deus e em menos de seis horas ele chegava ao porto de Barcelona, vencendo milagrosamente a distância de 360 km que separam a Ilha de Maiorca dessa cidade espanhola”. (http://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/sao-raimundo-de-penafort-um-homem-para-todas-as-missoes-143534.).

Este relato deixa claro a atuação de Deus em prol do poder sagrado quando este é confrontado pelo rei, representante do poder temporal. A consequência desta viagem milagrosa é o reconhecimento do rei da autoridade de Raimundo e, portanto, da própria Igreja e dos que dela participam. Nesta parte da narrativa, é importante pensar os papéis da exemplaridade e da moral subjacente à historieta, ou seja, Deus, para provar que o temporal deve se submeter ao espiritual, faz coisas inacreditáveis. Portanto, todos, sem exceção, devem se submeter à autoridade da Igreja, aqui, sutilmente, evoca-se o princípio da auctoritas medieval.

Conforme apontado anteriormente, elementos como o embate entre os poderes temporal e o espiritual, bem como combate à heresia, a evangelização, a caridade, etc., cumprem rigorosamente aspectos presentes em obras e hagiografias medievais, como na “Legenda Áurea”. O importante, a ser destacado, todavia, é a operação narrativa que estas hagiografias servem em pleno século XXI, no momento em que são inseridas em um site altamente elaborado de uma associação religiosa.

Como fora destacado, por um lado, existe um aspecto de legitimação da atuação dos Arautos, visto que a vida apresentada de são Raimundo de Peñafort enquadra-se perfeitamente aos propósitos e aos objetivos atuais da Associação, seja em razão de seu impulso evangelizador, seja em razão da afeição aos estudos e proeminência do direito canônico (tal como o defendido pelo seu fundador João Clá). Finalmente, sublinha-se ainda um aspecto indicado pelo artigo 2 acerca da vida de Raimundo – ele é um santo “factótum”, isto é, um santo “faz tudo” na obra de Deus. Em outras palavras, Raimundo é chamado para acudir a Igreja em todas suas necessidades, trata-se de um santo universal tal como a Associação dos Arautos.

Além disso, há o aspecto da memória, ou melhor, do discurso acerca do passado medieval veiculado no site dos Arautos, especialmente, por meio destas hagiografias. Através da hagiografia de um santo medieval, a idade média é reapresentada e reelaborada, mas com contornos próprios,os quais não se pode, necessariamente, serem chamados de “medievais”. Tem-se, portanto, uma “outra” idade média. Neste caso, um medievo encantado, espaço de submissão da agência humana aos desígnios da Providência, logo, nem obscura,nem intolerante, mas, literalmente, encantada e, por conseguinte, uma idade média afeita aos Arautos e a sua missão no mundo.

O dado mais relevante destas narrativas é que, por meio da teoria do medievalism, pode-se repensar o próprio lugar da religião no mundo contemporâneo. Todo o discurso acerca do desencantamento do mundo, nascido no século XVIII, reafirmado no final do século XIX e em boa parte do século XX, pode ser questionado por um movimento, em diversas frentes, de séries de televisão, passando pelos jogos de vídeo game, até chegar a grupos religiosos como os dos Arautos, cujo propósito é se autolegitimar trazendo para o aqui e agora a idade média. Esta temporalidade, ou melhor, esta atemporalidade, passou a ser constantemente reelaborada, tal como no caso das hagiografias analisadas neste texto, a fim de oferecer ao homem do século XXI um lugar encantado e mágico no qual tudo é possível, principalmente, em termos religiosos.

No limite, este movimento amplo de reapropriação/reelaboração da idade média coloca mesmo em cheque os grandes paradigmas das ciências sociais nascidos no iluminismo. Ironicamente, a própria forma de corroborar a santidade de são Raimundo, jamais seria aceita pelos pressupostos católicos, nascidos no contexto da contrarreforma. Essa forma maravilhosa como são Raimundo consegue retornar a Barcelona seria, certamente, rechaçada por qualquer jesuíta da contrarreforma, afinal é demasiadamente maravilhosa, mesmo para um santo. Sublinha-se a ausência da crítica histórica em relação ao texto da hagiografia, ele é tomado como um dado inquestionável; sustentada, única e exclusivamente,pela autoridade do autor da hagiografia, ou seja, uma completa submissão da história à teologia, tal como no medievo.

Dessa forma, abandona-se toda a reflexão teológica após a contrarreforma, ocasião em que o paradigma da representação dos santos nas hagiografias foi modificado devido às críticas aos elementos maravilhosos. Desde então, o debate sobre a santidade e a forma “correta” para se escrever uma hagiografia estão diretamente ligados ao trabalho dos bolandistas belgas, que, desde o início do século XVII, produziram um “método científico” para os estudos de hagiografias (Peeters 1961). Todo o procedimento crítico proposto por estes jesuítas foi abandonado pela narrativa trazida pelo site dos Arautos do Evangelho.

Esses jesuítas que reescreveram a história dos primeiros mártires cristãos, desprezaram aquilo que consideravam como a linguagem ingênua dos medievais, especificamente os elementos de uma religião encantada marcada pela ação do maravilhoso. Acreditavam que, para promover as virtudes dos santos, era necessário que os textos fossem estabelecidos de forma “científica”. A forma como são Raimundo retorna a Barcelona em sua hagiografia seria considerada, pelos bolandistas, como um traço medievalizante capaz de desmerecer as suas virtudes de santo. Contudo, para os membros da Associação dos Arautos é um traço importante da santidade de Raimundo que deve ser enfatizado para promover a ação evangelizadora deste grupo. Ora, não se trata de um grupo qualquer, muito menos de um site “ingênuo”, cada detalhe, da iconografia às hagiografias disponíveis, passou por um processo de “criação”, ou seja, as informações dadas estão de acordo com um tipo de espiritualidade (Vauchez, 1995) e de um tipo de santidade cujo medievo é o carro chefe.

O site utiliza, deliberadamente, uma série de elementos medievais com o objetivo de plasmar a imagem dos Arautos ao medievo, como um tempo em que a sociedade vivia de forma “correta”, portanto, sob a tutela da Igreja. Assim, os Arautos apresentam uma idade média, que não é nem a do obscurantismo, cara ao imaginário ocidental do século XVI, nem uma idade média “nacionalista”, do século XIX e de grande parte do século XX, e, muito menos, uma idade média das “minorias” e do “exotismos” à moda francesa dos Annales, mas sim uma idade média encantada, na qual o poder de Deus tudo pode, e os santos estão lá para provar isso. Certamente, as idades médias do obscurantismo, do nacionalismo, dos franceses já foram demasiadamente estudadas, porém, são todas, quer gostem ou não os medievalistas, tais como o medievo encantado, apropriações discursivas cuja proposta teórica do medievalism surge como uma forma interessante de apresentar problemas contemporâneos, sobretudo, de se questionar o porquê de se retomar a idade média para legitimar movimentos religiosos como os dos Arautos.

Referências
Clinio de Oliveira Amaral é professor associado de história medieval da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil, pesquisador do Linhas (Núcleos de estudos sobre narrativas e medievalismos, cf. https://linhas-ufrrj.org/) e coordenador do LABEP (Laboratório de estudos dos protestantismos).
João Guilherme Lisbôa Rangel é mestre e doutorando pelo PPHR-UFRRJ, pesquisador do Linhas (Núcleos de estudos sobre narrativas e medievalismos, cf. https://linhas-ufrrj.org/) e do LABEP (Laboratório de estudos dos protestantismos).O trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001.


Gaiffier, Baudouin de (1977) Hagiographie et historiographie. Quelques aspects du problème. Collection Subsidia Hagiographica. Bruxelles: Société des Bollandistes, nº 61 Recueild’Hagiographie (1967-1977), p. 139-196, 1977.

Gentry, Francis G. and Müller, Ulrich (1991) ‘The reception of the Middle Ages in Germany: an overview’. Studies in Medievalism. III/4. p. 401. Disponível em: <http://medievallyspeaking.blogspot.com/2010/04/what-is-medievalism.html>. Acessoem 24 de julho de 2018.

Goullet, Monique (2004) ‘Introduction’. In: Wagner, Anne. Les saints et l’histoire. Sources hagiographiques du Haut Moyen Âge. Paris : Éditions Bréal, p. 8-22.





Peeters, Paul (1961). L’œuvre des Bollandistes. Bruxelles : Société des Bollandistes.

Philippart, Guy (1998) ‘L’hagiographie comme littérature: concept récent et nouveaux programmes?’, Revue des Sciences Humaines, nº 251, p. 11-39. juillet-septembre.

Vauchez, André (1974). ‘Beata Stirps’ : Sainteté et lignage en Occident aux XIIIe et XVe siècles. In : ÉCOLE FRANÇAISE DE ROME. Famille et parenté dans l’Occident médiéval.  Actes de : Colloque de Paris organisé par l’École Pratiques des Hautes Études en collaboration avec le Collège de France et l’École Française de Rome. Paris, 6-8 juin 1974. Paris : École Française de Rome et Palais Farnèse, pp. 397-407.

Zumthor, Paul (1980). Parler du moyen âge. Paris: Les Éditions de Minuit.

24 comentários:

  1. Excelente reflexão meus caros. Instigado pela conclusão apresnetada, qual seria, ou é, o impacto de tal reflexão, por conseguinte, nos saberes que se propõe acadêmicos a respeito do medievo. Posto de outra forma, se essas formas de representação são exatamente e somente isso - uma representação - o que legitima, ou deveria legitimar a "versão" academica diante das muitas outras versões disponíveis?

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    1. Olá, Lucas! Muito obrigado por sua leitura atenda do nosso texto. Vamos à resposta. Embora existam nuances, partimos, neste texto, falo mais por mim do que pelo João, de uma perspectiva que o saber acadêmico é um discurso, ou para citar o Foucault, tem uma ordem que normatiza e estabelece parâmetros para o seu campo. Assim, a sua legitimidade está colocada através de sua metodologia e de sua teoria, isso no que diz respeito ao saber acadêmico strito sensu. Ademais, essa metodologia e teoria devem ser explicitadas de modo a não suscitar dúvidas aos leitores sobre qual é o lugar de fala dos autores, inclusive, considerando os aspectos éticos subjacentes ao conhecimento.
      Provavelmente, a nossa resposta pode incitá-lo a dizer, ora, mas o mesmo vale para os Arautos do Evangelho no que diz respeito à forma como se apropriam da idade média, eles, tal como nós estabelecemos um discurso sobre o passado e o utilizamos. Sendo assim, a diferença entra o nosso modo de ver o passado e o deles, na prática, é pequena, mas um pequeno detalhe, permite-nos defender o nosso discurso como acadêmico e válido e o deles como mera apropriação; no caso específico dos Arautos há uma subordinação da história à teologia com o objetivo de legitimar uma forma de ver a história, pautada em um preceito teleológico, em nosso caso, negamos esse tipo de subordinação, uma vez que a ordem discursiva da teologia não é nem melhor, nem pior do que o da história, mas são ordens discursivas diferentes, portanto, por uma questão metodológica, não se pode criar este tipo de confusão. Outrossim, a nossa ordem discursiva obriga-nos a apresentar uma teoria, e, em nosso caso, optamos pelo medievalism, que propõe, deliberadamente, usar a história medieval como um pretexto para pensar questões contemporâneas.
      Gostamos muito de sua pergunta porque, na verdade, você abordou um ponto que não é consensual entre mim e o João, eu (Clínio) sou assumidamente pós-modernista na forma de compreender a história, ao passo que o João ainda se coloca como um historiador mais voltado para as questões da história social. Por isso, sempre debatemos questões semelhantes às suas em nossas conversas.
      Abraços!
      Clínio e João

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  2. Clinio e João, parabéns pelo texto! Visitei o site dos Arautos e fui "recebido" por um imenso banner do novo ebook publicado pela entidade sobre são Miguel arcanjo; é possível notar uma representação guerreira do Arcanjo (escudo, espada, couraça), além dele dispor de um elmo coroado pelo Sol. Em suma, é uma espécie de réplica de armadura medieval e, tudo leva a crer, trata-se de uma criação contemporânea! Como dediquei algum tempo aos estudos das imagens, queria saber se o site oferece também alguma imagem de são Raimundo de Peñafort (principalmente do milagre da navegação). Além disso, vocês pretendem trabalhar com uma possível imagética raimundiana no futuro, sobretudo das imagens produzidas na contemporaneidade?

    Renan M. Birro

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    1. Olá Renan! Muito obrigado pelas felicitações e pela pergunta.
      O site não apresentava uma imagem do milagre de são Raimundo, apenas imagens do próprio santo no corpo do texto que analisamos. Para trabalhos futuros, pretendemos analisar sim a questão imagética, bem como de "design" do site. Mas isso é um projeto futuro que demandará maior domínio no trabalho com mídias digitais.

      Um abraço!
      João e Clinio

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  3. Clínio e João, gostaria de parabeniza-los pelo texto, além de fazer um questionamento da seguinte forma:é evidente que existem muitos pontos de contato que ligam a construção tanto discursiva, quanto da escrita hagiográfica, e nesse se lembrarmos do Verbete de Sofia Boesch Gajano no Dicionário Temático do Ocidente Medieval no volume 2 apresenta uma discussão importante para a fabricação de um santo que seria a luta do mundo Físico (Corpo) com as questões ligadas ao mundo Sobrenatural.
    Com isso, tem-se a ligação com processo de criação das Relíquias, ela afirma ainda que " As relíquias são garantias tangíveis de uma comunicação entre a terra e o céu" (Gajano, 2002,p.450) e tendo trazido esse ponto, faço o seguinte questionamento se os Arautos possui uma noção parecida com relação a são Raimundo de Peñafort ?

    Agradecido,
    André Luis Araujo Pereira Junior.

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    1. Olá, André! Muito obrigado por sua leitura atenta do nosso texto. A resposta é afirmativa, ou seja, os Arautos, além de se autorreivindicarem como um grupo religioso medieval, inclusive tomista, apresentam uma relação com a santidade que, no limite, como dizemos no texto, é anterior ao advento dos bolandistas, ou seja, eles não negam os elementos do maravilhoso encantado que os jesuítas belgas tanto criticavam, ao contrário, eles a utilizam como forma de legitimidade discursiva, veja, por exemplo, a citação sobre a fuga do são Raimundo de Peñafort, a sua estrutura, em muito, lembra a da Legenda Áurea. Apesar de existir poucos estudos sobre o medievalism e a religião como, já demonstrou Richard Utz em seu artigo – “Medievalism Studies and the subject of religion” na Studies in Medievalism, nº XXIV, 2015 – que os estudos acerca da religião com base na teoria do medievalism ainda são incipientes. Na verdade, apesar de corrermos os riscos de uma afirmação muito peremptória, até o momento, não conseguimos encontrar mais de cinco pessoas que estão a fazer isso. Portanto, pensar a religião através do medievalism é sim algo novo e que, em nosso ponto de vista, pode trazer frutos, sobretudo, se considerarmos a realidade religiosa brasileira da contemporaneidade.
      Abraços! Clínio e João

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  4. Primeiramente gostaria de parabenizá-los pelo texto.texto de muita clareza. É um tema bastante destaque para os dias atuais, haja vista nossa realidade contemporânea.
    Minha pergunta é, qual foi o critério adotado para a ter sido trabalhado o São Raimundo? Considerando que há uma gama de santos do medievo e que suas histórias são muito parecidas?
    Outra dúvida é o que levaria um homem do século XXI, a acreditar que esta nesse lugar encantado onde tudo é possível?
    Thayse Rosa

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    1. Olá Thayse! Obrigado por sua participação e interesse.
      Nós analisamos o site como um todo e são Raimundo foi o que apresentou maior riqueza de detalhes, além de ter sido um dos únicos santos medievais utilizá-dos pelos Arautos. Em relação a sua segunda pergunta, não sei se teríamos uma resposta "definitiva", finalmente ela tem um grau de complexidade bem grande. Contudo, o que nossos estudos têm apontado para gente é que nosso mundo nunca foi tão desencantado quanto o iluminismo e o século XIX nos fizeram acreditar. Os motivos objetivos para isso, não saberia responder com precisão, mas acreditamos que a construção religiosa ocidental está diretamente relacionada a isso, daí o medievo como espaço privilegiado para esta reflexão. No mais, precisamos aprofundar nossas reflexões.
      Um abraço!

      João e Clínio

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  5. Boa noite, que esclarecedor o texto de vocês, há algum tempo tenho me perguntado por qual razão pessoas de nosso tempo, buscam na realidade medieval religiosa, um modelo para a vida. Sem respostas, passei a procurar informações sobre os Arautos do Evangelho, até me dirigir a sua mais nova sede. Não cheguei a entrar no prédio, mas, a paisagem que cerca o castelo, em tudo nos remete ao medieval, inclusive o grande condomínio residencial que está muito próximo a esse monumento, todo murado...Enfim, a minha pergunta é a seguinte, do ponto de vista social, da dinâmica atual das relações sociais, é possível que o uso de representações tão idealizadas como as dos Arautos, e suas referencias medievas, sejam uma necessidade de fuga coletiva e no limite, um produto que possui grande potencial de venda, considerando os discursos que o senso comum atribui à aquilo que nos remete ao medieval a santidade o messianismo e a devoção ao divino, dentre outros valores.
    Obrigada!
    Adriana Paniagua Fumagalli

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    1. Bom dia, Adriana!

      Muito obrigado por seus comentários em relação ao nosso texto. Acreditamos que, mesmo que façamos uma tese, não conseguiríamos responder à complexidade da sua pergunta. Contudo, defendemos que existam dois debates importantes que, talvez, lhe auxiliará a pensar um pouco mais sobre isso. Incialmente, quando nos deparamos com a realidade brasileira, mas isso vale para outros países também, podemos ficar “surpresos” de como a experiência religiosa é extremamente importante para as sociedades, pois acreditamos, ao nosso ver, ingenuamente, na proposta iluminista de criar campos específicos entre política, religião e economia. Mas o ser humano não tem uma “chave” de ligar e desligar por meio da qual, assume-se um papel, ora laico, ora religioso. A situação é demasiadamente mais complexa. Portanto, fica a pergunta, o mundo foi, de fato, desencantado como queriam os iluministas e os intelectuais do século XIX? O segundo ponto de debate, ainda mais complicado, diz respeito à inabilidade, das ciências sociais, sobretudo, do campo da história, para criar chaves analíticas acerca do religioso, não é o caso de darmos exemplos aqui, mas, muitas vezes, intelectuais, em nome de uma crença em uma imparcialidade possível, acabam produzindo juízos de valores sobre a função social da religião em nosso mundo. Por favor, compreenda-nos não estamos aqui para fazer apologia da religião, ou mesmo da falta de religião, do ponto de vista ético, estamos apenas a apresentar problemas cujas reflexões ainda estão muito incipientes.
      Por último, sobre o seu comentário em relação ao mercado sobre a representação medieval, de fato, isso é verdade, mas há vários estudos sobre isso, como indicação fica a obra de Carol Robson e Pamela Clement intitulada Neomedievalism in the media: essas on film, television, and eletronic games, publicada em 2012.
      Abraços! Clínio e João

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  6. Cumprimentos aos senhores autores!
    Através do texto publicado, me atento e restrinjo para a questão/colocação no aspecto do uso da memória, do tempo histórico. Compreendendo os escalonamentos temporais, nesse caso o medievo, temos nessas sociedades marcas e características próprias, mas também elementos de outros tempos passados e elementos que ainda nos restam nos dias atuais. Na missão dos Arautos do Evangelho, o medievalismo em características, tais como procissões, pinturas, construções e mais fazem do religioso privado um retorno à memória, a uma religiosidade presente (não se é correto falar que é feita uma religiosidade fora do seu tempo, já que o indivíduo é fruto do tempo) inserida em elementos passados. Pois bem, o que me é de dúvida é por qual motivo se considera os Arautos como usurpadores de um medievalismo dito que só pode ser “encantado”; estudo e vejo nos Arautos do Evangelho (sobretudo por serem sociedade privada) usando do direto a memória e ao resgate histórico, e assim também um certo alinhamento de vida ao que se assimila de práticas medievais. Considerando a tradição como um elemento significativo e inapagável para a fé Católica, fico na dúvida de qual é a motivação de apagar a possibilidade de inserção a um “lugar” de memória, que é adaptado para uma vida em memória de um tempo. A questão que coloco é no campo da liberdade de uso da memória e da história não como uma desconsideração do tempo atual ou de uma pressuposta “fé medieval superior” a atual, e também que no medievo a igreja tinha absoluto controle de tudo e todos (para os Católicos, as normas e controles existem até hoje), mas sim tratando de tradicionalismo e resgate histórico. Minha dúvida permeia nas falas sobre a instituição apegada pelo medievalismo, e não na narrativa do Santo.
    Douglas Felipe Gonçalves de Almeida.

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    1. Prezado Douglas,
      Muito obrigado por sua leitura e por seus comentários. Para te responder, cremos que é necessário fazer algumas divisões. Incialmente, partimos de sua crítica, com a qual se concorda, que o maior desavio de ser utilizar a teoria do medievalism para a temática da religião, resido no fato de que que o religioso está sempre no presente, portanto, não se pratica a religião no passado. Aliás, como já indicamos, ao responder a pergunta do senhor André Araújo, há poucos estudos sobre religião no campo do medievalism; por ora, citamos o trabalho de Richard Utz em seu artigo – “Medievalism Studies and the subject of religion” na Studies in Medievalism, nº XXIV, 2015, e, até o final do ano, será publicado um texto sobre isso em um livro organizado por Nadia Altschul, da universidade de Glasgow. Todavia, admitir essa questão não impede, ao nosso ver, pensar essa teoria para o campo da religião. Na verdade, esse religioso, apesar de viver no aqui e agora, faz, por meio da espiritualidade, e, em alguns casos, até mesmo por meio da teologia (mas isso não vem ao caso aqui), uma apropriação, deliberada, de uma experiência do passado e a utiliza. Em nossa avaliação, isso pode ser aplicado aos Arautos do Evangelho, pois as diversas alusões à idade média pululam em seu site institucional. Portanto, apesar de se tratar de um tema de religião, consideramos válida a utilização da teoria do medievalism, pois o nosso objeto no texto, conscientemente, ressignifica a idade média. Todavia, isso, de forma alguma, implica algum juízo de valor sobre a instituição, inclusive, sobre o direito à memória.
      A segunda parte, em nossas colocações, diz respeito às questões sobre a memória. Segundo a nossa reflexão, a memória é um lugar de disputa, no caso dos Arautos, optam, e, de forma alguma usurpam, por evidenciar uma memória atrelada à tradição medieval. Ao nos referirmos como uma prática “encantada” isso não é um juízo de valor sobre a instituição, na realidade, a nossa crítica, daí o uso do adjetivo encantado, é direcionada para as ciências sociais que acreditaram cegamento no postulado iluminista de que seria possível compartimentalizar em campos específicos a religião, a economia a política com base em um primado da razão e, em última instância, a ciência, para muitos cientistas sociais, tornar-se-ia uma “religião” de um mundo completamente desencantado. Uma tese, subjacente, mas muito incipiente ainda em nossas reflexões, é que a proliferação de experiências religiosas e encantadas, é um indício de que este primado da razão não foi tão eficaz quando pensado outrora. Isso nos ajudaria a compreender, no campo da religião, por exemplo, a retomada no discurso de matriz pentecostal e neopentecostal a luta entre Satã e Deus, tão presente nesses grupos.
      E, por último, quanto à sua pergunta, especificamente, vemos como legítima, embora não nos caiba fazer juízo de valor sobre qualquer manifestação religiosa, o direito à memória, pautada na idade média, realizado pelos Arautos.
      Um grande abraço!
      Clínio e João


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  7. Professores Clínio e João, boa tarde, adorei o texto e contextualização feitas pelo senhores! Agora queria fazer um questionamento, sabemos que muitos historiadores renascentistas, tentaram de todas as formas depreciar de todas as formas a Idade Média, não é a toa que a chamam de Idade das Trevas, mas na verdade, eu como aluno de História que sou, e também como católico praticante que vos fala, quais meios científicos que os bolandistas belgas usaram, claro, além da critica, para jogar por terra a hagiografia de São Raimundo?

    Att: Denilson Paulo da Silveira

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    1. Olá Denilson! Obrigado pelo seu comentário e questionamento.
      Pensamos que não se trata de outros meios para "jogar por terra" ou não a hagiografia de são Raimundo. O que devemos perceber é o "contexto" em que os Bolandistas se enquadram. Trata-se de uma mudança brusca de paradigma em que muitos "valores" medievais, como a crença simbólica em seres mitológicos deixam se ser validadas, bem como a noção de "autoridade" é deslocada para a noção de "autor". Nesse sentido, para além da crítica textual realizada pelos Bolandistas, você tem um mudança conjuntural em que relatos como estes que analisamos, não caberia mais, pelo menos para um Bolandista. Esperamos ter esclarecido. Qualquer coisa, podemos continuar o diálogo.

      Um abraço!
      João e Clínio

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  8. Quero parabenizá-los pelo brilhante texto. Muito bem referenciado e conceitualmente bem escrito. Eu tenho algumas questões que me são caras. A primeira é se é possível, em algum sentido, pensar o catolicismo popular no nordeste, com suas rezas e penitências, por exemplo, a partir da ideia de medievalism.
    Quais foram as outras hagiografias analisadas por vcs? Por fim, há um texto mais ampliado que pudessem disponibilizar?

    JOSÉ ANCHIETA BEZERRA DE MELO

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    1. Olá, José! Obrigado pelos elogios. Ficamos felizes com sua apreciação. Sobre a primeira pergunta, ainda não podemos dizer "sim" ou "não" com certeza. Isso porque apesar de existir desde a década de 1970, os estudos utilizando o Medievalism, no Brasil, ainda são extremamente incipientes. Contudo, achamos válido tentar fazer esta aproximação. Atualmente, o Clinio e seus orientandos têm se dedicado a pensar o neopentecostalismo. Portanto, achamos válido tentar transpor esses estudos para o nordeste católico.
      Em relação às hagiografias analisadas, nós dois trabalhamos com isso desde a graduação, porém não era utilizando as teorias do Medievalism. Com este aporte teórico, temos apenas este texto e um capítulo que será publicado na Escócia, este ano, do Clinio analisando a Igreja Mundial do Poder de Deus.

      Um abraço!
      João e Clinio

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  9. Boa noite, texto maravilhoso! Gostaria de saber se há outras hagiografias analisadas por vocês?

    Silvia Fernanda Passos Moreira

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    1. Boa Noite, Silvia! Orbgiado pelo elogio. Como mencionei no comentário acima, trabalhamos com hagiografias há algum tempo. Contudo, utilizando o Medievalism existe apenas a análise deste texto, e um capítulo do Clinio a ser publicado na Escócia este ano analisando a Igreja Mundial do Poder de Deus.
      Um abraço!
      João e Clinio

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  10. gostaria de saber qual seria a importância de se questionar o porquê de se retomar a idade média para legitimar movimentos religiosos como os dos Arautos? e no que isso interfere na modernidade?

    Silvia Fernanda Passos Moreira

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    1. Então, Silvia, acreditamos que a idade média é um período privilegiado para pensarmos questões como a interação entre o "social" e o "religioso". Desta forma, este período não apenas nos fornece arcabouço teórico, mas também metodológico.
      No que tange a modernidade, pensamos que mediante análises como a que apresentamos, conseguimos de alguma forma questionar determinadas certezas que se instalaram no meio das ciências humanas em geral, de que pós iluminismo e Revolução Francesa, o mundo se secularizou e se desencantou. Como apontamos no texto, grupos como os Arautos, não nos parecem tão "desencantados" assim.
      Um abraço!
      João e Clinio

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  11. Olá, gostaria primeiramente de parabenizar pelo texto. Segundo, a minha dúvida tem a ver com a tese. O pouco que conheço sobre o Arautos é que a caracteristica mais forte e mais conhecida deles é a busca pela perfeição. Sendo assim, eles se inspiram no primeiro modelo de perfeição, Jesus, e posteriormente nos santos, os quais são em maior quantidade durante a Idade Media. Ao meu ver, as historias dos santos desse periodo são mais expressivas e " fantasiosas" por ter sido um periodo de forte religiosidade que possibilitou a esses santos, digamos, uma "amostra maior" do poder e ação de Deus na vida deles. Portanto, não sei se entendi muito bem o texto, mas acredito que os Arautos utilizam não a Idade Media, propriamente, para legitimar a finalidade do movimento ("Esta Associação nasceu com a finalidade de ser instrumento de santidade na Igreja, ajudando seus membros a responderem generosamente ao chamamento à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade, favorecendo e alentando a mais íntima unidade entre a vida prática e a fé".), e sim as pessoas da epoca pela forma como entregaram sua vida e se dedicaram a Deus. Então, o que legitima as ações do grupo nao seria a busca dos santos da epoca, mais precisamente as suas viturdes, carismas, ações, do que pelas alegorias e fantasias medievais, incluidas, inclusive, nas hagiografias ? Pois, se o objetivo do movimento é buscar elementos fantasiosos na historia dos santos para efetivar os ses objetivos evangelizadores, eles não precisam retornar muitos anos. No seculo XX tem um santo chamado Pe. Pio de Pietrelcina que possui historias ditas maravilhosas e alguns fatos comprovados cientificamente. Enfim, a frase no texto "para os membros da Associação dos Arautos é um traço importante da santidade de Raimundo que deve ser enfatizado para promover a ação evangelizadora deste grupo" bastante me intrigou e gostaria que pudessem me eclarecer melhor. Desde já, agradeço.

    MARIA JULIANA DA SILVA SOUSA

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    1. Olá Maria, agradecemos suas pergunta, bem como sua felicitação. Quando falamos deste "retorno" à idade média feita pelos Arautos, não estamos dizendo, necessariamente que eles se interessam por este período ou que, deliberadamente, eles querem fazê-la renascer. A questão aqui é que, ao contrário do senso comum (que rechaça a idade média), bem como da própria Igreja que, pós Trento, passou a olhar com muita reserva para as hagiografias medievais(visto o trabalho dos bolandistas), os Arautos divulgam uma hagiografia medieval sem qualquer tipo de reserva (seja ela crítica, contextual, etc). Ao fazerem isso, eles retornam e valorizam um traço que, durante a idade média, era muito comum e caro para aquela sociedade. Nesse sentido, o que chama atenção não é apenas as virtudes do santo, mas sim o fato de que essas virtudes, supostamente, atenderiam a demandas medievais, contudo, se fazem presentes em um site do século XXI. Desta maneira, estando atentos, ou não, a idade média, os Arautos acabam contribuindo para reelaboração e reutilização deste período.
      Espero ter respondido.

      Um abraço!
      João e Clinio

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