Beatriz Faria


DE QUÊ ESTAMOS FALANDO QUANDO RECONSTRUÍMOS A IDADE MÉDIA

Medievalismo de quem?
O presente texto visa refletir brevemente acerca da história do medievalismo, bem como os principais elementos de sua produção em relação ao espectador. O intuito é: perceber a genealogia de recuperação da Idade Média e como o processo de produção de mídias e objetos medievalistas se dá; quais são seus pontos de atenção e a perspectiva do espectador no processo.

Meneguello, pesquisadora brasileira e professora da Universidade de Campinas, demonstra que o medievalismo é, primeiramente, um momento específico da Inglaterra do século XIX que teria evocado uma reconstrução medieval, isto é, teria se reapropriado de imagens, temáticas e narrativas medievais para a produção cultural e artística da época. No entanto, o medievalismo ainda sim se estendeu por todo o século XX, XXI e, paralelamente, pode também ter surgido antes mesmo do XIX.

Argumenta-se que o processo de recuperação da Idade Média tenha se iniciado em seu imediato fim, simultaneamente entrecortando seu término e o próprio encadeamento de sua recuperação. Considera-se que Eduardo I da Inglaterra possa ter sido um medievalista na medida em que, com intenção explícita, decidiu recuperar trechos específicos da história dos monastérios ingleses a fim de provar o direito da coroa britânica sobre território escocês. No entanto, é a partir do século XVIII onde, frente a uma miríade de acontecimentos que encapsulam mas não se restringem a: O renovado interesse da sociedade europeia na arqueologia de suas línguas e culturas tradicionais, o ato de reviver documentos históricos sobre políticas locais, a dissolução dos monastérios, os antiquários as baladas de Thomas Gray, The Castle of Otranto de Horace Walpole e a série de traduções falsas sobre mestres medievais que teriam inclusive influenciado grandes literatos como Keats, Tennyson e Coleridge são apenas alguns dos inúmeros fatores artísticos que teriam fomentado o medievalismo no XVIII inaugurando assim seu início histórico. Além disso, o próprio panorama do gótico e anti-gótico, ou seja, o interesse pela antiga Lei Gótica, ou lei dos godos, que teria para os ingleses desempenhado um papel fundamental na criação da Carta Magna inglesa, bem como as reminiscentes construções de arquitetura gótica e a natural repulsa e fascínio exercido por ambos os elementos, também teriam contribuído grandemente para que, no final do século XVIII e começo do século XIX, o medievalismo pudesse sair de casos isolados nas margens artísticas e se estender assim para toda a sociedade inglesa.

A partir do século XIX o medievalismo torna-se uma ocorrência artística nacionalizada. As grandes transformações industriais teriam sido apenas um dos vários pontos de mudança econômica, social e cultural que viabilizariam a popularidade do medievalismo. Os Rafaelitas, irmandade artística inglesa que se inspirava pelos trabalhos de medievalistas conhecidos como Ruskin e Thomas Carlyle, a reimpressão de The Canterbury Tales bem como o lançamento de Ivanhoe foram apenas alguns objetos dentre a grande produção artística e cultural medievalista no XIX.

A partir do século XX o medievalismo encontra no cinema seu suporte preferido, abandonando assim a faceta principal de momento histórico inglês e assumindo para si o próprio cunho de reconstrução de uma Idade Média idealizada. Através de mídias fílmicas, o medievalismo viu sua produção se alargar em títulos que, tanto imagética como narrativamente, visavam voltar a um passado medieval. Ainda é muito discutido os porquês de se idealizar e reconstruir uma Idade Média, mas aparece como consenso na área que, entre outros motivos, a nostalgia ou a falta de processamento da própria história seriam os principais fatores.

Medievalismo do quê?
É importante perceber que, desde o século XVIII até o presente, o medievalismo tem, impreterivelmente, encontrado seu expoente no processo de idealizar a Idade Média. Essa idealização é potencializada pela questão da dualidade; isto é, os fatores duais que sempre permeiam sua produção e disseminação. A relação entre belo e grotesco demonstrada por Matthews principalmente em relação ao medievalismo do XIX e XX, bem como a relação entre romântico e gótico ou até mesmo o espectador e o medievalismo “outro”, onde o objeto medievalista se coloca propositalmente à distância do espectador, são apenas algumas das inúmeras antíteses que se apresentam dentro da discussão medievalista. Seu propósito é: a ocorrência, apontada pelos autores aqui citados, tem como especificidade ressaltar o próprio conteúdo da reconstrução medievalista ora representando uma Idade Média romântica, bucólica e simples, ora ressaltando o horror gótico, a violência, a doença, os bárbaros e as guerras. Ora representando a beleza das construções românicas e góticas, evidenciando as descobertas políticas, sociais, culturais e científicas, a nobreza, os cavaleiros e castelos, o código cavalheiresco, ora evidenciando a tirania, a peste, a Inquisição e a opressão social.

Todos esses fatores têm por princípio ambientalizar a produção medievalista, que, principalmente no século XX, se baseou grandemente nesta dualidade. Porém, a ambientação não é tudo; é necessário que o espectador reconheça o representado, o que por sua vez incide grandemente sobre a autenticidade do objeto medievalista que pouco tem a ver com a acuidade histórica ou artística do período. Espera-se, entre o campo acadêmico, a acuidade ou precisão histórica, de modo que o representado possa se relacionar de maneira equivalente, ao seu original medieval. No entanto, o objeto popular medievalista tem como objetivo retraduzir uma Idade Média idealizada, de modo que sua imagem tem por utilização reforçar o imaginário medievalista cultural; ou seja, fornecendo ao público o que ele espera ver em um objeto medievalista, ao contrário do que seria a precisa representação histórica e artística de um período ou narrativa.

Ao fornecer para a audiência a expectativa de autenticidade medieval – essa baseada em elementos iconográficos previamente estabelecidos através de retraduções ou significações medievalistas modernas de objetos medievais – o medievalismo está simultaneamente preenchendo uma demanda artística e a alimentando, já que é dessas mesmas retraduções, frequentemente utilizadas nos mais variados objetos artísticos, que a própria concepção de autenticidade medievalista se perpetua.

Logo, podemos concluir de maneira resumida que o medievalismo, cuja produção artística e cultural remonta há mais de 3 séculos, ofereceu, em toda a sua história, uma perspectiva cultural de retradução e reapropriação de uma Idade Média que não é a Idade Média histórica, mas se relaciona com ela através do próprio processo de apropriação e reutilização da imagem do medievo. Além disso, também podemos notar que a autenticidade medievalista pouco tem a ver com a acuidade histórica de seu modelo original tampouco com a precisão de suas representações; o que permeia a construção de imagens e narrativas medievalistas é o sentimento de autenticidade do público referente ao objeto consumido. Dessa maneira, a dualidade medievalista é apenas uma das ferramentas utilizadas frente à produção de objetos e mídias a fim de fornecer o sentimento de autenticidade buscado pelo público; o mesmo pode ser observado desde as produções do século XX até as mais recentes mídias.

Ainda que a brevidade do texto limite a profundidade da discussão, espera-se que este breve inciso sobre o medievalismo possa ter, de alguma maneira, contribuído frente ao debate do tema, de modo que a as especificidades do medievalismo tenham se mostrado de maneira clara e objetiva.

Referências
Beatriz Faria Santos é Mestranda em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo -UNIFESP

ALEXANDER, Michael. Medievalism: The Middle Ages in Modern England. Connecticut: Yale University Press, 2007.

BIDHAUER, Bettina. “Medievalism and Cinema.” in D’ARCENS, Louise (ed.). The Cambridge Companion to Medievalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.

CLEMENTS, Pam. “Authenticity”. in UTZ, Richard. EMERY, Elizabeth (org.). Medievalism: Key Critical Terms, 2014, e-book, ISBN 978 1 78204 333 1, não paginado.

D’ARCENS, Louise. “Introduction: Medievalism, scope and complexity”. In (Ed.) D’ARCENS, Louise. The Cambridge Companion to Medievalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.

ECO, Umberto. “A Nova Idade Média”. In ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Quotidiana. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984.

ECO, Umberto. “Dez Modos de Sonhar a Idade Média.” In ECO, Umberto. Sobre Espelhos e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1989.

FISHER, Matthew. “1: Archive.” in UTZ, Richard. EMERY, Elizabeth (org.). Medievalism: Key Critical Terms, 2014, e-book, ISBN 978 1 78204 333 1, não paginado.

HOBSBAWM, Eric J. “A Origem da Revolução Industrial”. in Da Revolução Industrial ao Imperialismo. Tradução: Donaldson Magalhães Garschagen. 5. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2000.

KEITH KELLY, A. Beyond Historical Accuracy: A Postmodern View of Movies and Medievalism. Perspicuitas Internet-Periodicum Mediävistik, 2007, não paginado. Disponível em: http://www.perspicuitas.uni-essen.de/medievalism/articles/Kelly_Beyond%20Historical%20Accuracy.pdf.

MATTHEWS, David. “How Many Middle Ages?”. in Medievalism: a Critical History. Suffolk: D. S. Brewer, 2015.

ROSENFELD, Jason. BARRINGER, Tim. “Victorian Avant-Garde”. Catálogo de exposição realizada no Tate Museum em 2012.

SIMMONS, Clare. “Introduction: Popular Medievalism and the Romantic Ethos.” in Popular Medievalism in a Romantic-Era Britain. 2011, E-book, ISBN 978 0 230 11706 8.

STURTEVANT, Paul B. “Introduction”. in The Middle Ages in Popular Imagination. Londres: I.B. Tauris, 2018, e-book, ISBN 978 1 78672 357 4, não paginado.

UTZ, Richard. EMERY, Elizabeth (org.). Making Medievalism: A Critical Overview. in Medievalism: Key Critical Terms, 2014, e-book, ISBN 978 1 78204 333 1, não paginado.

13 comentários:

  1. Há algumas produções cinematográficas que usam e abusam do imaginário medieval que estavam bem longe da realidade (dragões, por exemplo). Até que ponto essas produções são positivas para a criação do conhecimento popular sobre a Idade Média?
    Adrienne Peixoto Cardoso

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  2. Olá, Beatriz. Considerando a sua experiência e entendendo que o medievalismo pode ser um conceito amplo, que articula história, arte, etc; como você trabalharia a ideia de "medievalismo" discutida no seu texto na sala de aula, considerando a realidade brasileira? Michell Alves de Almeida Ricarte

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  3. Olá, Beatriz. Considerando a sua experiência e entendendo que o medievalismo pode ser um conceito amplo, que articula história, arte, etc; como você trabalharia a ideia de "medievalismo" discutida no seu texto na sala de aula, considerando a realidade brasileira? Michell Alves de Almeida Ricarte

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  4. Boa noite. Gostaria de saber se você também consegue refletir o processo da escravidão negra em Portugal nos anos finais da Idade Média. Refletir isso seria também uma forma de medievalismo. Não?

    Carlos Mizael dos Santos Silva

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  5. Olá Beatriz! A princípio, parabéns pelo seu texto! Minha colaboração aqui é no sentido de refletir acerca dessas construções sobre o medievo. É comum encontrarmos, neste período, um ar de mistério e glória, sobretudo na produção cinematográfica. Mais do que isso, a produção artística da época é bem intrigante, pois revela o comportamento da sociedade pautada na religiosidade, mais do que isso, nas relações de honra e poder frutos da estrutura do feudo.

    Jefferson Fernandes de Aquino.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. O cinema pode contribuir para ilustrar e caracterizar o período medieval. Mas de certa forma limitam-se as compreensões sobre um momento tão complexo da História. Desta maneira, o medievalismo tratado no cinema, não seria uma forma de reforçar o censo comum de que o período medieval foi uma época histórica linear e obscura?

    Alini Garbelini

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Jordana Pereira Rodrigues9 de abril de 2019 às 14:38

    Olá, parabenizo pela ótima exposição da problemática no texto. Pensando nesse problema da idealização das figuras do medievo, o papel dos cânones, disseminados pioneiramente por Dürer, na transição para a modernidade, poderia ter servido para idealizar os personagens que compunham o imaginário medieval? Seja essa idealização de forma agradável ou não

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  10. Boa tarde Beatriz!
    Gostaria de expor que sua perspectiva sobre o medievalismo foi muito elucidativa. Seu texto menciona que a partir do século XVIII até a contemporaneidade, o medievalismo reconstruiu o conceito de cultura e a história medieval, inclusive durante nossos dias, a cultura medieval, é frequentemente reproduzida em filmes, seriados e novelas, divergindo da concepção humanista do século XVI e Reforma Protestante, além dos filósofos iluministas pós Idade Média, que em seus conceitos caracterizavam a Idade Média como Idade das Trevas, como se a Idade Média, durante mais de mil anos, vivesse mergulhada na escuridão religiosa e no atraso político e econômico. Podemos afirmar que o Medievalismo e incluindo a Escola de Annales através de Marc Bloch e Jacques Le Goff, conseguiu desmistificar ou extinguir a ideia de Idade das Trevas relacionada a Idade Média?

    Um forte abraço.

    Alexandre Leite Rosa

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  11. Olá, Beatriz!
    Primeiramente, parabéns pelo texto e pela discussão levantada. Percebemos que dentre os pontos destacados em seu texto está também a questão da representação da medievalidade no cinema. Entendemos que esse é um terreno pelo qual é preciso ter bastante cuidado, sobretudo pela utilização desse recurso como ferramenta auxiliar no processo de ensino-aprendizagem. Dizemos isso porque há uma série de filmes "medievais" que reduzem a vida no Medievo às guerras e demais conflitos belicosos, o que dificulta bastante ao tentar visualizar outros aspectos das civilizações medievais, tais como a cultura, os imaginários, o cotidiano etc. Nesta direção, gostaríamos que você comentasse sobre como poderíamos fazer o uso, em sala de aula, de filmes do período sem que não fiquemos presos ao contexto das guerras ou no plano da idealização dessa época.

    Gratos,
    Fábio Alexandre da Silva e Graziele Rodrigues de Oliveira

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