Eduardo Leite Lisboa


DO INTERESSE PELA MENTALIDADE MEDIEVAL: A FACE MONSTRUOSA DA COLONIZAÇÃO E OUTRAS PONDERAÇÕES


No ano de 2015 a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) suscitou inúmeros debates em torno da história antiga e medieval devido a premissa de um currículo voltado ao nacional, abolindo do ensino escolar esses dois recortes “anacrônicos” a realidade brasileira. Desde então, diversos espaços foram promovidos dentro das universidades no intuito de debater o tema, não demorando a gerar reações negativas – como explícito na carta da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM). E o presente ensaio é tributário dessas discussões: intenta-se aqui  iluminar as raízes do discurso civilizatório moderno a fim de ilustrar a pertinência do conhecimento medieval em um tema estrutural de nossa sociedade – a colonização –, de maneira a abrir uma antecâmara para ponderações de um ensino mais efetivo deste período.

O Outro civilizacional durante a Idade Média
Igualmente uma série de estruturas da sociedade medieva, as raças monstruosas emergem de pelo menos dois mananciais: o greco-latino e o judaico-cristão. Seria exaustivo resgatar o trajeto percorrido de Homero, passando por Aristóteles e Alexandre-o-Grande até chegar em Plínio-o-Velho e Solino, afinal, não houveram substanciais criações monstruosas durante a Idade Média, antes sim uma completa ressignificação do já existente. Encontramos no artigo Os monstros na cultura medieval, de Paulo Roberto Soares, um balanço histórico bastante razoável acerca dessas figuras, e ele diz-nos que dois autores são fundamentais para entendê-las: Santo Agostinho (354-430) e Santo Isidoro de Sevilha (560-636). Ambos trazem a ideia pressagística presente na própria etimologia monstrum (monstrare, mostrar) e de igual maneira discorrem sobre a condição humana ou não desses seres: nada mais são de que elementos da natureza que diferem da forma padrão do homem devido sua transfiguração, mutação e hibridismo. Participando, portanto, da Criação, se possuem dedos a mais, apenas um olho na testa ou mesmo uma cabeça de cão, devem antes de mais nada serem interpretados à luz da mensagem divina que evocam (SOARES, 2011, p. 188-210). Em suma, é possível explorá-los apenas tendo como referência o pensamento analógico medieval, entendimento do sentido que a esfera física impele à experiência humana (conhecimentos, comportamentos e sentimentos), algo muito bem delineado por Hilário Franco Júnior (2013, p. 1-37).

Estas criaturas, no entanto, encontravam-se distantes. O acidente geográfico no qual se localizavam era o extremo Oriente, primeiro por conta da tradição teratológica herdada que lá os colocaram, segundo pois no pensamento do período “o lá e o cá se relacionam em simetria, não na similaridade entre as partes, mas no equilíbrio do conjunto, que se exagerado em uma parte deveria ser mais regrado em outra, como uma compensação” (SOARES, 2011, p. 193) – eram verdadeiramente Outros. Dessa forma, para o homem medieval conhecê-los, era necessário viajar ou escutar/ler narrativas desses encontros.

Desde a aurora do medievo encontramos relatos de viagens, sobretudo em função da missionação e ocupação do centro-norte da Europa continental e insular. Contudo, é a partir de fins do século XII que tal gênero avultará juntamente com a intensificação do comércio e início das Cruzadas, sendo a ascensão do Império Mongol (1214) e sua tolerância com o cristianismo fatores fundamentais para a abertura daquele lado do globo, fazendo com que vários peregrinos, cavaleiros, emissários papais, comerciantes e aventureiros para lá fossem e registrassem suas experiências. Além de seus utensílios e mantimentos, ao preparem-se, os viajantes levavam consigo uma bagagem muito mais pesada. Maria Amorim sintetizou-a de maneira precisa em uma coletânea de estudos bibliográficos sobre o assunto:

“Conforme se alargavam os horizontes do espaço geográfico, tornando as terras longínquas mais conhecidas, também aumentava o fascínio pelas coisas maravilhosas que albergavam. Tudo o que de insólito, invulgar, ou estranho contivesse a natureza, o homem dessas paragens, mais aguçava a curiosidade e o espanto. Aquele mundo parecia um outro mundo, um lugar onde tudo era o reverso do cognoscível, o outro lado do espelho, o alter mundus. Um sistema de representações do “diferente” começou a marcar lugar no referencial dos Ocidentais, num processo que não se pode considerar totalmente novo, uma vez que essas categorias de significação, quer antropológicas, quer naturais ou espirituais, já se encontravam muitas vezes no seu universo mítico. O homem medievo possuía definições e quadros de entendimento apriorísticos, e, por vezes, o que o deslumbrava era também o corolário de uma rede subtil, mas reveladora de muitas permanências das antigas culturas da Antiguidade e das autoridades, sobretudo religiosas, do período medieval. Pouco importava, para o efeito, se as viagens eram reais ou imaginárias, se o autor era o próprio protagonista da experiência ou, apenas, um simples coletor de notícias, de relatos orais, de narrativas, de relatos bíblicos, de fisiólogos, bestiários, romances de cavalaria, tratados de astronomia, ou qualquer espécie de informes. [...] O itinerário podia reproduzir os anteriores, com uma ou outra variação, o escriba ser detentor de pior ou melhor estilo literário, ter, ou não, percorrido os lugares que bordejavam o Paraíso Terreal, o Reino do Preste João, as moradas das raças monstruosas, os vales do Demônio, as terras e Gog e Magog. Importante era o efeito produzido, o avolumar de maravilhas, o crescer em espanto”. (AMORIM, 1999, p. 132-133)

Portanto, a demanda da viagem muitas vezes – quando não necessariamente – eram as maravilhas. Por mais difícil que seja conceituar, as raízes de mirabilia estão em mirari, verbo latino para olhar, deslumbrar; uma admiração pelo extraordinário (LE GOFF, 1994, p. 46). “O fato de, nas terras distantes, as coisas serem totalmente diferentes das nossas é uma das características mais importantes (e mais procuradas) da viagem” (KAPPLER, 1994, p. 63).

Um exemplo disso são as Viagens do cavaleiro Jean de Mandeville, escrito em cerca de 1356. Por mais que não haja um consenso em torno de quem foi a personagem que o redigiu, Mandeville também sequer chegou a sair de seu gabinete. Estamos diante de uma narrativa fictícia, um aglomerado de outras obras medievais, livros de história, tratados científicos e literatura religiosa. Enquanto que a primeira parte de seu escrito diz respeito a um itinerário seguro pelo Oriente Próximo até a Terra Santa, a segunda trata das terras de seu Extremo, o local da dessemelhança aqui almejado.

Um dos assuntos mais discorridos é sobre os Tártaros, afinal, “não há sob o firmamento senhor tão grande nem tão poderoso como o Grande Cã” (MANDEVILLE, 2007, p. 210); porém, justamente por ser um império conhecido, as maravilhas versam sobre opulência e soberania, ao passo que encontram-se em locais de imprecisão histórico-geográfico o insólito. Como já dito, o imaginário medieval buscava interpretar o diferente e enxergava a realidade de maneira analógica, portanto nada passava despercebido, desde roupas, crença e hábitos alimentares até a cor da pele e eventual participação na economia da Salvação. Exemplificarei com um monstro deveras conhecido.

Na ilha de Nacumera, escreve Mandeville, os homens e as mulheres possuem cabeças de cão, são chamados de canapholos, obedecem a um rei muito rico e bem praticam a arte da guerra, “são gentes razoáveis e de bom entendimento, mas adoram a um boi como seu deus. [...] Vão completamente desnudos, com apenas um trapo com o qual tapam seus joelhos e os membros genitais” (MANDEVILLE, 2007, p. 180). Rafael Gonçalves  em sua tese de doutorado resgata que Retrame de Córbia redigiu no século IX uma epístola acerca dos cinocéfalos, concluindo que por sentirem pudor descendiam de Adão. O autor segue dizendo que João de Pian del Carpine, outro viajante, menciona a capacidade destes seres em falar inteligivelmente mesmo entre-latidos e que João de Marignolli associa-os aos cínicos, na esteira de Santo Agostinho (filósofos que “procuram imitar a depravada vida canina”). Além do mais, destaca a capacidade racional e de organização/reprodução de uma sociedade estável mesmo para sempre possuindo a marca da bestialidade em seus corpos (GONÇALVES, 2016, p. 224-226).

Nosso sir acha por bem assinalar que os cinocéfalos “caso façam alguém prisioneiro na batalha, comem-no” (MANDEVILLE, 2007, p. 180). O ato da antropofagia é relatado outras vezes em sua obra, e conforme Susani França, este destaque não tem a finalidade de mantê-los excluídos, mas antes procura convencer os leitores da cristandade de sua superioridade moral (LEMOS FRANÇA, 2009, p. 174). Isso acontece constantemente com outros “costumes bestiais”, como o de não comer pão ou ingerir carne crua, não vestir roupas, não viver em casas, não possuir o dom da oralidade ou apenas grunhir, etc.

É importante ter claro que a credibilidade desses relatos não residia na veracidade, até porque para os medievais tudo isso já era real, estando confirmado pelos Antigos, Bíblia e Padres da Igreja; porém, para legitimar seu percurso narrativo, Mandeville constantemente faz alusões às auctoritas e reforça informações não experienciadas com o uso de frases como “ouvi de alguém digno de fé”. A recepção destes relatos foi vasta e as razões disso estão justamente no cansaço da trivialidade cotidiana da Europa Ocidental. O relato em questão por exemplo, contou com mais de trezentos manuscritos em dez línguas (francês, inglês, latim, alemão, neerlandês, dinamarquês, tcheco, italiano, espanhol, irlandês) e noventa edições até o século XVII (KAPPLER, 1994, p. 59). No célebre estudo de Ginzburg é-nos trazido que o mesmo figurava entre os livros do moleiro Menocchio, denunciando tamanha popularidade. E o moderno mercado editorial não deixou por menos!

Sendo assim, é possível atravessar as pejorativas balizas temporais impostas ao medievo, de maneira a verificar uma possível extensão da cosmovisão presente em tais fontes.

As novas paragens do Outro medieval
Guillermo Giucci em Viajantes do maravilhoso: o novo mundo analisa brevemente o contato de Odisseu (o Ulisses romano) com o ciclope Polifemo. Movido pela necessidade do espírito em conhecer (como um bom viajante), o rei aqueu decide encontrar-se com ciclopes em uma ilha vizinha a qual estava; todavia,

“A curiosidade do viajante [...] é duplamente singular. Porque ele não quer conhecer, e sim comprovar; comprovar se os ciclopes observam as regras dos aqueus, verificar se os códigos de conduta do aborígene se ajustam ao modelo exemplar do estrangeiro. De fato, Ulisses imagina os traços que correspondem ao aborígene a priori da experiência, bestializando-o antes de sua chegada à ilha. [...] Da inofensiva viagem da curiosidade rumamos para um encontro entre duas culturas que progressivamente adquire as características de um conflito entre a civilização e a barbárie”. (GIUCCI, 1992, p. 26)

Em síntese, o ciclope é representado como ocioso, pré-social, sem leis, sem hospitalidade, feroz, antropófago e degradado fisicamente; ou seja, sem qualquer vestígio de humanidade. A vitória do grego sobre Polifemo simbolizaria, para a cultura europeia, a primazia da astúcia/civilização sobre a selvageria/barbárie do aborígene. Neste mesmo livro o autor elenca algumas características das mirabilias, sendo duas pertinentes para a presente reflexão: “magnífica o que toca, forjando frequentemente, por meio da interposição sistemática de um oropel de excessos, uma imagem empobrecedora da alteridade” e “revela mais sobre a ideologia que o engendra e consome do que sobre a realidade que declara reproduzir” (GIUCCI, 1992, p. 16). Tendo em mente esses dois aspectos e lembrando que este era, para os medievais, o entendimento apriorístico dos povos desconhecidos, podemos ampliar os horizontes rumo ao ameríndio e africano.

Frank Lestringant discorre no primeiro capítulo de seu livro O canibal: grandeza e decadência sobre a passagem do cinocéfalo ao canibal (LESTRINGANT, 1997, p. 27-39). Antes de explorar o diário de viagem de Cristóvão Colombo, inventor do neologismo (1492), resgata o aqui já exposto sobre as raças monstruosas provenientes dos acervos geográficos da Antiguidade transmitida ao Medievo por Plínio, Solino, Agostinho de Hipona e Isidoro de Sevilha; destacando que para este último o ciclope sucede imediatamente ao cinocéfalo e lembrando que tais referências abundam na Imago Mundi de Pierre d’Ailly, livro de cabeceira do descobridor também leitor das Viagens de Jean de Mandeville. Isto posto, o autor faz o percurso etimológico e sublinha que, mesmo mantendo o radical canis, Colombo também faz uma alusão a Grande Cã, afinal, estava ele “na costa ocidental da Ásia”, onde tais seres abundam conforme a tradição: “[...] caniba não é outra coisa senão o povo de Grão-Cã, que deve ser vizinho deste” (COLOMBO apud LESTRINGANT, 1997, p. 30).

Ainda de acordo com Lestringant, o termo “canibais” logo viraria sinônimo de “brasileiros”, imaginados na Europa como povo de rosto achatado semelhante aos cães. Ora, “[...] o nariz achatado na literatura de viagem, mas também na legislação racial da África do Sul até data recente, era a característica de povos inferiores, prontos a serem dominados – primitivos, sem dúvida, mas perfeitamente domesticáveis” (LESTRINGANT, 1997, p. 36).

Como se não bastasse essas questões, Klaas Woortmann traz n’O selvagem e o Novo Mundo: ameríndios, humanismo e escatologia que o entendimento dos negros africanos enquanto descendentes amaldiçoados de Cam (estando na cor da pele esta referência) alargou-se aos recém descobertos autóctones americanos (WOORTMANN, 2004, p. 60). De igual maneira, a escatologia do século XVI viu no ameríndio, mesmo que por ignorância, um agente de Satã tanto quanto um judeu ou muçulmano (também considerados Outros no medievo, como é possível calcular). No entanto, a demonologia e espírito da gesta dei foi mais intensa entre os espanhóis do que nos empreendimentos lusos, afinal, o contexto coincidia com a luta contra os sarracenos – daí a prática de construir catedrais sobre as ruínas de templos indígenas, tal como na mesquita de Córdoba. A “Reconquista” da Europa e “Conquista” da América são duas faces da mesma moeda (WOORTMANN, 2004, p. 99-100).

Avançando para os séculos XVII e XVIII, Woortmann apropria-se de Keith Thomas para ilustrar o que poderíamos entender como a permanência das categorias aqui esboçadas no discurso civilizatório moderno:

“Robert Gray declarava, em 1609, que “a maior parte” do globo era “possuída e injustamente usurpada por animais selvagens (...) ou por selvagens brutais que, em razão de sua ímpia ignorância e blasfêmia idolatria, são ainda piores que os animais”. O conde de Clarendon concordava: “a maior parte do mundo é ainda habitada por homens tão selvagens como as feras que com eles convivem”. “Suas palavras soam mais parecidas às dos chimpanzés que às dos homens”, relatava sir Thomas Herbert, a respeito dos habitantes do Cabo da Boa Esperança; “duvido que a maioria deles tenha antepassados melhores que os macacos”. “Os hotentotes”, dizia um clérigo da época de Jaime I, eram “bestas com pele de homem”, e sua fala, “um ruído inarticulado em vez de uma linguagem, como o cacarejar das galinhas ou o engrolar dos perus”. “Trata-se de animais imundos”, disse um viajante, que “dificilmente merecem o nome de criaturas racionais”. Os séculos XVII e XVIII ouviram muitos discursos sobre a natureza animal dos negros, sobre sua sexualidade animalesca e sua natureza brutal”. (THOMAS apud WOORTMANN, 2004, p. 68-69)

Aquilo que assistimos a partir dos Quinhentos serviu, enfim, como uma domesticação/assimilação, um esforço cognitivo de compreensão das novidades oriundas da Expansão Ibérica:

“Qualificar o ameríndio [e o negro africano] como selvagem, em qualquer dos registros herdados do Medievo ou construídos pelo humanismo, foi uma forma de torná-lo familiar, por mais paradoxal que possa parecer. O selvagem teratológico – gigante, cinocéfalo, homo caudatis, etc. – é um bom exemplo: se “transferido” para o Novo Mundo, permaneceria onde sempre esteve desde a Antigüidade, no limite entre o conhecido e o desconhecido, naquelas partes em branco dos mapas. Também os novos povos selvagens, semelhantes aos antigos citas e germânicos ou aos irlandeses medievais, continuavam ocupando o eschatiá”. (WOORTMANN, 2004, p. 277-278)

O nomadismo (maldição na tradição hebraica), ausência de tecnologia e linguagem articulada (aspectos do intelecto), bem como religião não-cristã, até o século XVIII levava o estatuto de selvagem medieval: algo entre o homem e o animal, uma sub-humanidade ou monstruosidade típica dos habitantes das florestas, desertos e montanhas – longe estariam estes maculados da imagem e semelhança de Deus graças a sua deformidade física e moral. Como aludido, a atribuição de tais características se davam nas bordas do conhecido: agora, no quarto continente e restante da África subsaariana.

Considerações finais
Ainda no século XXI vivemos banhados por racismo e xenofobia, haja vista que apenas neste século tivemos a conquista de leis que tornam obrigatório o ensino positivo da cultura indígena, africana e afrobrasileira. Quando o assunto é cotas, então, assistimos a uma tormenta. Longe de entrar no mérito da escravidão ao longo do Brasil Colonial e Império, bem como da não inserção social dos povos oprimidos ao longo desse tempo, pergunto: qual o papel da História nestes temas? Obviamente que uma resposta minimamente esclarecida seria: central. Destarte, só podemos entender aquilo que gerou tais – infelizes – demandas dentro de um processo muito mais profundo que o pós-1500 proposto por muitos estudiosos brasileiros, nomeadamente aqueles que escreveram a primeira versão da BNCC.

Levando em conta que o imaginário é uma “atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta definindo e qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores [...]” (PESAVENTO, 2006, p. 10), a exposição aqui empreendida demonstra que verdadeiramente ele “[...] é um conceito libertador, um instrumento que abre portas e janelas e nos leva a outras realidades, mascaradas pelos rótulos convencionais das preguiçosas divisões da história” (LE GOFF, 1994, p. 31). Estes quadros mentais mais resistentes ao caminhar da história, dos quais Fernand Braudel já nos alertara, pautam condutas e demonstram as profundas raízes contidas em assuntos tão recorrentes na historiografia – como o problema da alteridade em questão –, evidenciando a necessidade de um horizonte temporal mais longo para compreendê-las.

No texto Por uma longa Idade Média (1994), Jacques Le Goff apresenta uma série de permanências medievais até o século XIX, algo facilmente alargável para além da Europa pensando na descentralizada, rural, católica e sincrética sociedade brasileira deste mesmo recorte, como apresentou Hilário Franco Júnior em Raízes Medievais do Brasil (2008). Aqui não caberia – em função do pequeno espaço – elencar “percursos históricos” de várias temáticas que demonstram a importância estrutural do medievo em nosso país, no entanto, a partir da breve ilustração feita de uma das várias faces da colonização pondero que para um ensino mais efetivo, de pertinência e dimensão histórica, o período medieval deva ser re-equacionado, não abolido. E o estudo das mentalidades, mas evidentemente não só, em muito potencializa tal empreendimento.

Referências
Eduardo Leite Lisboa, licenciado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5428506342272992. E-mail: eduardolisboa.his@gmail.com.

AMORIM, M. Viagem e mirabilia: monstros, espantos e prodígios. In: CRISTÓVÃO, F. (org.). Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias​. Universidade de Lisboa: Edições Cosmos/Centro de Literatura de Expressão Portuguesa, 1999.
FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001.
FRANCO JÚNIOR, H. Raízes medievais do Brasil. Revista USP, n. 78, p. 80-104, 2008.
FRANCO JÚNIOR, H. “Similibus simile cognoscitur. O pensamento analógico medieval”. Revista Medievalista (online), n. 14, 2013, p. 1-37.
GIUCCI, G. Viajantes do maravilhoso: o novo mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
GONÇALVES, R. Animais e homens de um oriente distante. Tese (doutorado) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Franca, 2016.
KAPPLER, C. Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
LE GOFF, J. O imaginário medieval. Lisboa. Editorial Estampa, 1994.
LEMOS FRANÇA, S. Os não-incluídos na cristandade. Revista Dimensões, v. 3, 2009, p. 166-181.
LESTRINGANT, F. O canibal: grandeza e decadência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
PESAVENTO, S. História & Literatura: uma velha nova história. In: COSTA, Cléria; MACHADO, Maria. História e Literatura: identidades e fronteiras. Uberlândia: EDUFU, 2006.
SOARES, P. Os monstros na cultura medieval. Revista Signum, v. 12, n. 2., 2011, p. 188-210.
Viagens de Jean de Mandeville. Tradução, introdução e notas de Susani Lemos França. Bauru: Edusc, 2007.
WOORTMANN, K. O selvagem e o Novo Mundo: ameríndios, humanismo e escatologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.


6 comentários:

  1. Oi Eduardo, tudo bem? Parabéns pelo texto! Eu pude lidar com esse tipo de leitura quando lecionei no Amapá, principalmente no trato com os alunos indígenas - com ênfase na visão colonial sobre o índio e como ela ecoa e foi ressignificada na contemporaneidade. Seja como for, você já teve contato com a perspectiva teórica do medievalism? Acho que poderia enriquecer ainda mais seu trabalho, ofertando um olhar complementar ao da historiografia francesa. Tem vários textos aqui na mesa que utilizam esse viés. Abraços,

    Renan M. Birro

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    1. Olá Renan, vou bem e você? Agradeço a parabenização e louvo sua iniciativa na UNIFAP, pois como esbocei no texto, estou de total acordo e possuo pleno interesse por tais abordagens. Sobre o medievalism, confesso que conheço sumariamente, carecendo de uma carga de uma leitura teórica volumosa. Atualmente minha pesquisa (projeto de mestrado) não vai no sentido do ensino da Idade Média, onde me parece que historiograficamente, no Brasil, tal perspectiva tem ganhado mais espaço/adesão. No entanto, ainda pretendo me aventurar por essas águas em ensaios como esse, pois pensando em uma carreira docente futura pretendo trazer esse eco, ressignificação e pertinência dos estudos medievais (no geral).

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  2. Olá, Eduardo. Gostei bastante da temática do teu texto. Gostaria de parabenizá-lo pela empreita! Mas durante o texto me ocorreu uma dúvida: em teu título está o conceito "Mentalidade", que vem aparecer apenas em suas considerações finais. Já o conceito "Imaginário" aparece no meio do teu texto e, também, nas considerações finais. Como deves saber, são conceitos distintos dentro de uma teoria da História, e gostaria de saber por que preferiu colocar "Mentalidade" em seu título, já que você explica "Imaginário" a partir de Jacques Le Goff no corpo do texto?

    Lunielle Bueno

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    1. Bom dia, Lunielle. Fico feliz que tenha gostado! Correntemente uso estes dois conceitos em seus entroncamentos, de um imaginário (em seu caráter simbólico e de representação) tributário da mentalidade (na sua longa duração e hábitos/práticas coletivos/estruturais), como intentei articular no aperceber comum do Outro. Conforme Jacques Le Goff mesmo, antecedendo a citação abreviada nas considerações: "Tal como a palavra 'mentalidade', a palavra 'imaginário' apresenta-se com um certo halo de indefinição que lhe confere uma parte do seu valor epistemológico [...]". De fato destaquei uma abordagem do imaginário em minhas considerações, no entanto - como não raro - foi necessário valer-me da mentalidade e neste "retorno" ponderei que tal perspectiva/campo historiográfico contribui para incursões dessa natureza, mas isso poderia ser empreendido, quem sabe, pela história social, política, etc. Reconheço, porém, que poderia ter me debruçado mais neste terreno teórico.

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  3. Olá Eduardo. O texto é muito interessante no sentido de lançar luz sobre novas abordagens para a Idade Média. Gostaria de entender como e se caminha, essa temática abordada no texto e uma perspectiva econômica da história medieval.

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    1. Oi Ayna. Assumindo que com "perspectiva econômica da história medieval" você indague sobre sua eventual influência nos primórdios da colonização (como procurei trazer na comunicação), rapidamente me veio a mente alguns exemplos que tentarei pontuar. 1. As motivações marcadamente medievais do navegador-descobridor Cristóvão Colombo, ao visar o financiamento de uma nova Cruzada com os lucros da empreitada ultramarina 2. A Ordem de Cristo (1319) e sua importância para o desenvolvimento náutico português 3. As capitanias hereditárias aqui aplicadas enquanto resultado do contato português nos séculos XIV e XV com as comunas italianas medievais, especialmente Gênova, que as utilizavam em suas colônias do Oriente Médio e nas ilhas mediterrâneas (H. Franco Júnior coloca que o andamento do sistema foi o mesmo da Idade Média: "cada donatário tinha o usufruto das terras e nelas poderes regalianos como arrecadar impostos [...]") 4. A continuação do interesse pelo comércio oriental (mas não somente) mesmo após seu "fechamento" com a conversão dos mongóis ao islamismo. O olhar econômico não é meu forte, mas espero ter contemplado razoavelmente seu comentário. Podemos seguir debatendo!

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