ENSINO DE HISTÓRIA E TEMPORALIDADE
NA CRÔNICA
“BREVÍSIMA RELACIÓN DE LA
DESTRUCCIÓN DE LAS INDIAS”
DE BARTOLOMÉ DE LAS CASAS
A
especificidade do século XVI nos territórios americanos
Em um importante artigo metodológico sobre o estudo do Medievo no século
XX, Raul César Gouveia Fernandes fez algumas afirmações sobre a relação entre
os estudos medievais e a história e a cultura dos países americanos:
“Pode-se afirmar, portanto, que os estudos medievais também auxiliam a compreender a história e a cultura dos países americanos: a própria expansão marítima, que ocasionou a descoberta do Novo Mundo, tem suas raízes solidamente vincadas na Idade Média. Temas da literatura medieval, como a gesta de Carlos Magno, permanecem vivos ainda hoje na poesia de cordel nordestina; além disso, é sabido que diversos escritores brasileiros de nosso século, entre os quais Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e Adélia Prado, beberam fartamente de fontes medievais.” (Fernandes, 1999, p. 7-14).
Diversos estudos abordam
os primeiros séculos de contato entre o mundo europeu e o mundo americano, tanto
voltados para a América castelhana (Weckmann, 1984)
quanto para a América portuguesa (Weckmann, 1993). No que se refere ao
aspecto da continuidade das características do Medievo ocidental com outras
territorialidades, as palavras de Fernandes, destacadas acima, fazem com que se
observe melhor a interação entre temporalidades muitas vezes tratadas de forma
separada, inclusive no Ensino de História.
Alguns autores trabalharam no sentido de romper com as barreiras
didáticas estabelecidas para facilitar o ensino de temporalidades distantes.
Neste sentido, é conhecida a tese de Jacques Le Goff sobre o que ele denominou
“le long moyen âge”(Le Goff, 2004), a qual, de certa
forma, é retomada e vinculada a uma de suas últimas publicações onde o autor
discorre sobre a divisão da História em períodos. No livro “A História deve ser
dividida em pedaços?”, ao tentar “precisar o que é um verdadeiro período
histórico”, Le Goff indica diversas continuidades entre o que tradicionalmente
é considerado o final do Medievo e o que é tradicionalmente considerada a etapa
histórica posterior, ou seja, o Renascimento, sendo que esta última é vista
pelo autor como um momento que “só marcou um último subperíodo de uma longa
Idade Média.” Sua proposta se fundamenta na utilização de uma longa duração na
qual há lugar para os períodos, os quais, de acordo com o autor, deveriam ser
abordados em termos de combinação entre continuidades e descontinuidades(Le Goff, 2015).
Neste sentido:
“Há, na longa duração, lugar para os períodos. O controle de um objeto vital, intelectual e ao mesmo tempo carnal, como pode ser a história, parece-me necessitar de uma combinação de continuidade e descontinuidade. É isso que a longa duração, associada à periodização, oferece. (...). A periodização é, assim, um campo maior de investigação e de reflexão para os historiadores contemporâneos. Graças a ela se esclarece a maneira pela qual a humanidade se organiza e evolui na duração, no tempo.” (Le Goff, 2015, p. 132; 134).
A proposta de Jacques Le Goff se insere em uma observação de
continuidades e descontinuidades em um período histórico, considerando uma
análise que associa a longa duração e a periodização. Se compreendermos o
continente americano durante o século XVI a partir da perspectiva da longa
duração histórica europeia, considerando o mesmo como um contexto no qual havia
diversas continuidades com os séculos anteriores, ou seja, com os séculos
medievais, observaremos que as crônicas do século XVI, as quais foram um
produto cultural do homem europeu, ainda apresentavam algumas características
de forma (material) e conteúdo (narrativa) com suas anteriores dos séculos
XII-XV.
Este seria, portanto, um dos primeiros gêneros históricos que foi
utilizado para registrar o contato entre estes dois mundos; porém, com um
conteúdo que, embora fosse narrativo, estava voltado para a descrição de uma
experiência e de um contato entre dois mundos, e não para uma narração e reflexão
sobre o passado (como é típico das crônicas medievais). Desta forma, a crônica
do século XVI ainda mantinha um vínculo com a sua anterior, a crônica medieval
dos séculos XII-XV, tanto no aspecto forma quanto no aspecto conteúdo; e como
foi utilizada para registar a memória dos acontecimentos que marcaram o início
deste contato pode servir como fonte através da qual se poderá problematizar
este contato aproximando-se ao pensamento dos seus autores.
A
crônica (medieval) como objeto de observação nas Américas
A partir do século
XVI, portanto, e a partir de uma perspectiva europeia, os europeus que chegaram
às terras americanas trouxeram consigo mentalidades, comportamentos e uma carga
cultural que podem ser entendidas em termos medievais. Muitas das formas pelas
quais estes homens textualizaram seus novos conhecimentos foi através de
experiências anteriores, muitas delas voltadas para um contexto europeu e
medieval. Além disso, ao se depararem com novas informações, muitas das quais
nunca tiveram contato anteriormente, traduziram-nas de acordo com seus
conhecimentos anteriores.
Esta postura é
denominada por Peter Burke como “tradução cultural”, ou seja, a tradução de uma
cultura através da interpretação com base em conhecimentos já adquiridos.
Interpreta-se as novas experiências através de uma bagagem cultural já
existente, traduzindo-a em termos explicáveis (Burke,
2010, p. 106).E uma das primeiras materializações destas experiências e
conhecimentos foram as crônicas do século XVI, as quais representam um dos
primeiros momentos de experiência entre os habitantes do mundo medieval e os
habitantes do mundo americano. Tais objetos contêm em si uma forma de
observação do mundo, no qual, em diversos momentos, ocorreu uma adaptação do
mundo americano à realidade mental medieval.
Atualmente
desenvolvemos o projeto de pesquisa intitulado “As crônicas do século XVI: o
homem entre o Medievo e o Novo Mundo”, no qual trabalhamos com crônicas
voltadas para o contexto da América portuguesa e da América castelhana. Tais
crônicas, compostas em um contexto de chegada do homem europeu ao continente
americano, apresentam em suas narrativas a percepção do homem entre o Medievo e
o “Novo Mundo”. Observadas a partir de uma perspectiva historiográfica, tais
crônicas representam, a partir da perspectiva europeia, a manifestação dos
primeiros contatos estabelecidos entre estes dois mundos, onde os aspectos do
imaginário pertencentes ao homem medieval foram constantemente utilizados para
explicar as primeiras percepções sobre o território americano. Além disso,
também podemos observar uma série de aspectos voltados para uma presença
comportamental medieval, já que a mentalidade dos personagens que as compuseram
se reflete nestes documentos representando os medos, os anseios, as
curiosidades e evidenciando, em suas primeiras experiências com as terras do
continente americano, características vinculadas ao seu imaginário.
Nos aproximadamente
quatro últimos séculos, a crônica medieval foi constantemente utilizada em
termos historiográficos. Durante o século XVIII, este gênero histórico foi
utilizado como testemunho literário e histórico em um contexto no qual o mesmo
era visto pelos historiadores como objeto que apresentava em seu conteúdo
identidades culturais e políticas. Posteriormente, na transição do século XVIII
para o século XIX, o mesmo serviu para compor narrativas factuais, com os
historiadores utilizando suas informações com pouco ou nenhum exercício
crítico, e assim era considerado como objeto que proporcionava um acesso direto
à realidade passada. Por fim, a historiografia do século XIX estudou-o como
documento histórico-linguístico-literário para obter dados para formulações de
sínteses históricas (Rubiés e Salrach, 1985, p. 467-506).
Desta forma, durante um certo período, a interpretação e crítica sobre a
historiografia medieval concentrou-se em realizar tão somente o discernimento
entre o que era verdadeiro e o que era falso nestes objetos(Aurell,
2013, p. 95-142).
No começo do século XX o panorama historiográfico se modificou e a
abordagem interdisciplinar passou a estar cada vez mais na pauta dos estudos
históricos. A renovação historiográfica ocorrida durante os anos setenta do
século XX favoreceu a descoberta de novos caminhos, o estabelecimento de novas
perspectivas de trabalho e a implementação de novas metodologias de pesquisa.
Com o gradativo abandono dos grandes modelos de explicação histórica,
utilizados entre os anos cinquenta e sessenta do século XX (estruturalismo
histórico francês; a escola marxista britânica; a cliometria norte-americana),
e a gradativa entrada em cena da proposta da terceira geração da Escola dos Annales estabelecendo uma
reabertura do diálogo com outras áreas de estudo, como a Antropologia (contexto
conhecido como giro antropológico) e
a Linguística (formulando o que denominamos giro
linguístico), ocorreu uma abertura de novos campos de atuação para a
interpretação histórica (Aurell, 2005). Uma das
consequências desta aproximação foi a multiplicação dos objetos históricos,
ampliando e inovando as possibilidades de trabalho dos historiadores e
historiadoras.E um dos objetos que possibilitou a ampliação do trabalho no
campo historiográfico foi a crônica medieval.
As crônicas do século
XVI apresentam uma forma específica de escrita da História, onde uma longa
experiência histórica do homem medieval, compositor destes objetos, coincidiu
com um contexto de experiência e contato com o novo, onde, muitas vezes, este
novo foi, de certa forma, adaptado e compreendido de acordo com a mentalidade
do personagem que compôs o documento. Neste caso, observamos uma reinterpretação
do passado medieval na “Brevísima relacción de la destrucción de Indias”, de
Bartolomé de las Casas, documento que agora analisaremos.
O
passado peninsular medieval ibérico reinterpretado na América
A “Brevísima relacción”
foi escrita em um momento no qual a conquista territorial havia sido feita em
duas direções, as quais foram apontadas por Mariane Manh-Lot, partindo das
Antilhas em direção ao norte, chegando ao território asteca, e em direção ao
sul, até se depararem com a organização territorial inca (Manh-Lot,
1990, p. 27-46). Para o presente trabalho, decidimos destacar o caso da
Nova Espanha, principalmente por ser um dos centros mais desenvolvidos e
habitados pelos castelhanos durante os primeiros decênios do período da
conquista.
Após a queda de
México-Tenochitlán, o território da confederação asteca caiu gradativamente em
mãos castelhanas (Santos, 2014, p. 218-232). Desse
modo, após um primeiro momento de conquista militar, o que ocorreu nestas
terras foi a gradativa transferência do aparato burocrático-administrativo
castelhano para a mesma, estabelecendo cada vez mais a presença da Coroa no
território. Uma destas mudanças foi precisamente a reorganização territorial
com a criação dos chamados vicereinos, dentre os quais encontramos o Vice Reino
da Nova Espanha (Elliott, 1998, p. 296-309).
Em sua narrativa, Las
Casas apresenta três localidades que foram conquistadas pelos castelhanos:
Cholula, onde fizeram uma “cruel e señala da matanza” (Las
Casas, 2006, p. 57), Tepeaca, “donde mataron a espada infinita gente” e
Tenochtitlán, onde“estando embebidos y seguros en sus bailes, dicen ‘Santiago y
a ellos!’ e comienzan com sus espadas desnudas a abrir aquellos cuerpos desnudos
y delicados e a derramar aquella generosa sangre, que uno no dejaron a vida; lo
mesmo hicieron losotros en otras plazas” (2006, p. 62;64).
Um aspecto a destacar
no fragmento acima é o grito feito antes das batalhas, “Santiago y a ellos!”, o
qual nos faz retornar ao contexto medieval peninsular ibérico conhecido como
Reconquista (Ríos Saloma, 2011). Como estabeleceu John
Elliott, a conquista da América teve os seus antecedentes: “várias são as
maneiras pelas quais uma sociedade agressiva pode expandir os limites de sua
influência, e vários foram os precedentes de todas elas na Espanha medieval” (Elliott,
1998, p. 135-194). Recuperando o grito destacado acima, uma destas experiências
refere-se ao contexto da Reconquista, durante a qual ocorreu uma expansão do
Cristianismo, uma migração de pessoas e uma busca por povoamento e colonização
de localidades antes pertencentes ao Islã. Neste sentido, estes homens, ao se
deslocarem para as terras americanas, não somente trouxeram em sua mentalidade
a mesma na qual estavam inseridos no contexto peninsular ibérico, mas também,
de acordo com a interpretação de Las Casas, a utilizaram no novo cenário no
qual faziam parte.
A presença da
referência a Santiago no documento de Las Casas obedece a um contexto distinto
do qual se desenvolveu originalmente. Se antes, entre os séculos XII-XV
Santiago era chamado para estar à frente da batalha contra os muçulmanos, agora
o mesmo, de acordo com Las Casas, era invocado no processo de “conquista”
contra as populações nativas. Trabalhos voltados para esta temática abordam
este fenômeno como uma forma de animar às tropas cristãs e também incluir os
espaços do novo território para os europeus na cosmogonia cristã medieval (Domínguez García, 2008, p. 82). Neste sentido,
observamos uma mudança na utilização da mentalidade do homem castelhano que se
encontrava no Novo Mundo e que era um homem medieval: Santiago permanecia na
mente deste homem, porém, agora, para ser utilizado não como catalisador de
forças para a reconquistas das terras antes cristãs, mas sim para a realização
de um processo violento denominado como “conquista” por Las Casas.
Desde o século IX,
precisamente na batalha de Clavillo (859), Santiago era reconhecido como o
protetor dos cristãos intervindo nas lutas contra os muçulmanos (Márquez Villanueva, 2004, p. 165, 188-189). Da mesma
forma que a manifestação cultural de São Jorge, devemos considerar que seu mito
foi sendo modificado com o passar do tempo, de acordo com as diferentes
circunstâncias históricas e culturais nas quais se manifestava (Domínguez
García, 2008, p. 18).
Sendo um dominicano,
Las Casas provavelmente não inventaria este detalhe em sua narrativa,
associando a figura da Santiago a um processo, o qual condenava como violento.
Portanto, o grito “Santiago” provavelmente ocorria nestes episódios e Las Casas
somente o registrou em sua obra. Este fenômeno fazia parte de uma mudança de
mentalidade e de comportamento do homem castelhano que se encontrava em terras
americanas. Em um plano mental mais geral, o que estava ocorrendo durante os
anos os quais foram denunciados por Las Casas era uma reinterpretação do
passado medieval peninsular ibérico, adaptado, agora, às situações nas quais os
homens e mulheres que se deslocaram até as terras americanas estavam inseridos.
Dessa forma, a presença de um elemento como o grito de Santiago em um contexto
do século XVI indica que a mudança entre a temporalidade medieval e a
temporalidade moderna não pode ser compreendida de forma simples, fechada, mas
sim analisada através da manutenção de uma mentalidade anterior, o que
representa uma interação, uma fluidez de mentalidade entre as mesmas.
Conclusão
A divisão das
temporalidades como “barreiras didáticas” impede muitas das vezes que se
observe as interações entre as mesmas e, dessa forma, a tendência é observar o
desenvolvimento histórico sem nenhuma interação temporal. Por outro lado,
quando desconsideramos tais barreiras e observamos o comportamento social
expressar-se através de comportamentos e cargas culturais já existentes podemos
ter uma noção melhor desta interação.
No caso do presente
estudo, tal interação é representada pela modificação/adaptação da figura de
Santiago em sua luta, em um primeiro momento na Península Ibérica, e em um
segundo momento nas Américas. Como afirmara Jacques Le Goff, o homem que chegou
as Américas era um homem medieval e, consequentemente, expressou-se e imprimiu
suas perspectivas de mundo principalmente nos momentos nos quais não conseguiu
tal expressão sozinho.
Portanto, o fato de
Santiago ser interpretado lutando contra as populações locais na América
representou uma interação entre o pensamento passado deste homem que veio para
as Américas e suas experiências contemporâneas, onde estas eram expressadas no
novo território a partir dos contatos que estabeleceu com as populações nativas.
Referências
Luciano José Vianna é Professor
Adjunto de História Medieval da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação
em Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI) da
Universidade de Pernambuco/campus
Petrolina. Doutor em Culturesencontacte a
laMediterrània pela UniversitatAutònoma de Barcelona (UAB). Membro do Institut d’EstudisMedievals (UAB-IEM).
Coordenador do SpatioSerti – Grupo de
Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus
Petrolina).
Fonte
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las Indias. Edición y notas José Miguel Martínez Torrejón. Prólogo y
cronología Gustavo Adolfo ZuluagaHoyos. Antioquia: Editorial Universidad de
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Oi Luciano, tudo bem? Parabéns pelo texto e pela iniciativa de pesquisa. O tema é apaixonante! Sobre Santiago, poucos sabem fora do Amapá, mas há uma festa no município de Mazagão (uma cidade histórica, antes assentada na costa da África e introduzida no coração da Amazônia em meados do século XVIII) que celebra o santo - uma provável herança da tradição portuguesa. A festa envolve danças e cantos que lembram a congada do Espírito Santo; nelas, o santo ibérico é lembrado, além de Carlos Magno (aclamado como aquele que expulsou os mouros da Península Ibérica). Talvez, noutro momento, você queira/possa ampliar a pesquisa para essas representações no Brasil, então já quis deixar uma sugestão. Abraços,
ResponderExcluirRenan M. Birro
Olá Renan, tudo certo.
ExcluirSim, eu não conhecia esta festa, obrigado pelo comentário. Pelo que percebi, ela faz parte de tradições posteriores inseridas no território brasileiro, mas que faz referência ao personagem. Sobre Carlos Magno, sua introdução também ocorreu com a circulação da literatura de cordel. já no século XVIII havia uma presença e circulação na América Portuguesa. Tive uma experiência neste evento no ano passado escrevendo sobre um cordel onde havia diversas "camadas" do passado medieval, onde o autor fazia referência a personagens e acontecimentos dos séculos VIII, IX e XII, tudo no mesmo texto. Mas há muito ainda que pesquisar, e acredito que estas representações que você comentou podem suscitar novas pesquisas. Obrigado.
Luciano José Vianna
Olá, Luciano. Parabéns pelo seu texto! Concordo plenamente com você nesta questão, e, também, em relação à demais conquistadores que eram vistos como "homens da modernidade" mas tinham, no fundo, um imaginário tipicamente medieval.
ResponderExcluirPosto isto, gostaria de fazer uma pergunta que foge um pouco do objetivo do artigo mas tem a ver com a fonte e temática. Durante o relato de Las Casas, parece haver uma transposição conceitual que durante muito tempo foi cara ao cristianismo. Na denúncia aos abusos cometidos por soldados espanhóis o autor os pôs numa posição de "homens maus" e os nativos que estavam sendo massacrados na posição de "homens bons" (não por natureza, mas de pessoas que, de fato, não representavam um risco à vida de outros). Ou seja, os cristãos que estavam ali e que, teoricamente, deveriam fazer o bem e levar as boas novas, estavam cometendo abusos e crimes que manchavam a imagem dos religiosos perante os nativos e, sobretudo, a imagem de Deus. Os soldados, grosso modo, estavam sendo os verdadeiros "pagãos" e não os indígenas. Como você vê essa narrativa feita por Las Casas? Pode ser dito que este é mais um elemento medieval que permeia sua escrita, principalmente essa divisão dicotômica do mundo entre cristãos x pagãos? Agradeço-te pela atenção. Abraços!
Marcos Vinícius da Silva Ramos
Olá Marcos, bom dia.
ExcluirInteressante a sua pergunta. Acredito que há duas questões, uma, por exemplo, de estrutura textual, e a outra voltada para o contexto.
Em relação a esta última, não podemo esquecer que a obra de Las Casas foi publicada originalmente em 1542, logo após as chamadas Leyes Nuevas de Índias, desta mesma data, na qual havia uma preocupação, por parte da Coroa de Castela, com as populações locais do território. Neste contexto, já se havia passado cerca de 50 de presença castelhana no território, e, a partir de então, gradativamente a Coroa de Castela se faria presente de forma "burocrática", ou seja, realizando o que John Elliott denomina de "as diversas conquistas": militar, administrativa, burocrática, espiritual, territorial, etc..., opondo-se, por exemplo, a uma presença castelhana que até o momento havia sido feita por "personagens", os chamados, conquistadores, como Cortés, Pizarro, etc...
Neste sentido, sobre a segunda questão, ou seja, a forma dualista encontrada no conteúdo da Brevísima relación, eu estou de acordo com o que você afirmou. Acredito que seria sim um elemento medieval narrativo que estava presente na escrita de Las Casas, partindo desta oposição narrativa que encontramos em muitos textos medievais. Para recuperar uma afirmação de Le Goff: o homem que chegou às Américas era um homem medieval. Obrigado.
Luciano José Vianna
Este comentário foi removido pelo autor.
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