Carlile Lanzieri Júnior


NOS BRAÇOS DA PRIMEIRA DAMA:
A GRAMÁTICA NA ACEPÇÃO DOS MESTRES ALAIN DE LILLE (1128-1203), JOÃO DE SALISBURY (C.1115-1180) E ADELARDO DE BATH (1080-1152)


Queimar ou não os livros da própria biblioteca para vencer o frio e a fome durante o inverno da região balcânica. Este foi o teor da dramática conversa entre András Riedlmayer, bibliotecário e historiador especialista em história islâmica da renomada Universidade de Harvard, e um dos sobreviventes ao cerco à cidade de Sarajevo, no início dos anos 90 do século passado. De acordo com o relato emocionado do sobrevivente, a solução para os próprios problemas era simples, estava bem ali diante dos olhos, ao alcance das mãos... Bravamente, optou por enfrentar a escassez de comida e as baixas temperaturas. Como recompensa, os livros continuaram preservados nas estantes nas quais há tempos estavam guardados.

Sem sombra de dúvida, o drama narrado por András Riedlmayer traz à tona um dilema compreendido apenas por almas sensíveis e abertas ao conhecimento. Uma decisão difícil foi tomada. Difícil, mas igualmente elevada, altruísta. Civilizada, com todas as letras. Do contrário, caso fossem transformados em combustível, os livros durariam apenas algumas horas; talvez dias, no máximo. Preservados, continuaram a atravessar gerações a dividir e multiplicar os conhecimentos cuidadosamente guardados em suas páginas. Alimentariam almas. Enfim, a solução rápida, individual e paliativa não faria muito mais que reduzir a cinzas séculos (ou milênios) de saberes lapidados e acumulados. Críticas ao presentismo tecnicista de fins lucrativos de nosso tempo encontrados nas linhas e entrelinhas que formam estes parágrafos não são uma mera coincidência...
        
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No mundo medieval, não havia lugar para as crianças. Essa afirmação foi deixada há algumas décadas por Philippe Ariès nas páginas iniciais de seu História social da criança e da família. Publicado no início dos anos setenta do século passado, o livro traz uma tese cuja força se mantém até hoje pelo uso. Para ele, as crianças eram tratadas como adultos em miniatura. Tal situação começou a mudar apenas em fins do século XIII, período descrito por uma historiografia mais tradicional como uma espécie prelúdio da modernidade urbana, laica, burguesa e racional que ganhou forma nos séculos subsequentes. Ainda de acordo com Ariès, em função das doenças e da mortalidade infantil então elevada, os nascimentos não eram logo registrados. As mortes dos recém nascidos também não eram sentidas. Não há como negar: implicitamente, Ariès se pôs a referendar a abordagem iluminista que por séculos agarrou-se à necessidade de se afirmar ao tomar o medievo como seu contraponto mal acabado. O lugar comum representado na historiografia pelas afirmações de Ariès impressiona: uma espécie de marco zero das interpretações históricas para o referido tema. Eis alguns exemplos.

O primeiro deles é dado por Mario Alighiero Manacorda com História da educação: da antiguidade aos nossos dias . Em tom quase sempre áspero ao se referir às práticas educacionais medievais, Manacorda afirmou que os monges cristãos, por exemplo, eram homens frustrados. Por isso, tinham a necessidade de surrar as crianças e adolescentes que viviam com eles nos mosteiros. O objetivo: dar um mínimo de vazão à raiva e insatisfação que traziam guardadas no peito. Na leitura de Manacorda, nenhum aprofundamento acerca das diferentes razões e tradições longevas por trás de tais punições. De forma semelhante, nenhuma palavra acerca das reações de quem sentiu tudo isso na própria pele quando já se encontravam na vida adulta.

Tempos antes da publicação de seu famoso livro, Philippe Ariès já havia afirmado que as práticas educacionais medievais difundidas sobretudo nas catedrais não visavam a criação e sim a mera repetição. Uma vez mais, nenhuma documentação consistente foi tomada como respaldo. Mas é a persistência das ideias contidas em História social da criança e da família que nos impressiona. Em São Luís: biografia (1999), Jacques Le Goff apenas roçou os dedos sobre a tese de seu compatriota. Anos depois, em livro escrito com Nicolas Truong, Uma história do corpo na Idade Média (2006), Le Goff retomou o raciocínio de Ariès. Desta vez, seguiu um pouco mais adiante ao afirmar que no medievo, ainda que de uma maneira diferente da que atualmente prevalece, os pais demonstraram sim afeto pelos filhos, um sentimento que cresceu sobretudo a partir do século XIII. Uma discordância? Sim, mas não muito... Em linhas gerais, as poucas páginas dedicadas por Le Goff e Truong se mostraram comedidas. Mas há esperança. E esta se encontra em rebentos historiográficos nascidos nas duas primeiras décadas deste século. Vamos a eles.

Em As pessoas na Idade Média (2018), Robert Fossier colocou o dedo em uma das feridas do argumento de Ariès. Embora sucinto, Fossier afirmou que existiu sim um lugar para as crianças no medievo. Estas não eram pequenos adultos para os quais se dava pouca atenção. Outra crítica igualmente sucinta à visão de Ariès está em uma breve passagem escrita por Sean McGlynn em A hierro y fuego: las atrocidades de la guerra en la Edad Media (2009). McGlynn disse também não concordar com essa proposta vendida no atacado com as cores vivas de uma verdade definitiva. Como Fossier, McGlynn não aprofundou a temática deixada sobre a mesa. Nem mesmo sugestões de livros ou documentos alternativos foram mencionados. Todavia, as inquietações reveladas por Fossier e McGlynn são um alento.

Se questionamentos que ousaram desafiar os argumentos de Ariès a partir de dentro começaram a se tornar comuns desde a década passada, isso de deve ao trabalho de pesquisadores de língua inglesa. Entre eles, citamos Sarah Lynch e Ben Parsons. Se Ariès enxergou na arte razão suficiente para tecer suas linhas argumentativas, foi justamente nela que Lynch se embrenhou para afirmar o contrário. De acordo com ela, as construções de espaços específicos para crianças e jovens nas dependências de mosteiros e catedrais indicam que possuíam um lugar naquela sociedade. Se a iconografia dos séculos XI-XIII ignorava a infância, a arquitetura as recebeu de braços abertos. No recém publicado Punishment and medieval education (2018), Parsons fez detalhada pesquisa acerca das diferentes razões para a existência de uma longeva pedagogia que previa punições físicas com varas e açoites, algo frequente na Antiguidade e no medievo. Ao contrário do que muitos podem imaginar, a busca pela dosagem correta dos castigos também foi uma constante, sobretudo na Idade Média. Excessos eram criticados. E é justamente nessa busca por equilíbrio que identificamos a importância então dada aos mais novos. Do contrário, o que explicaria tamanho rigor e preocupação? Afinal, quem ama educa... e pune!

Portanto, no que se refere à educação dada a crianças e jovens no medievo, é possível afirmar que boa parte da historiografia deu ênfase às instituições e personagens com suas trajetórias concluídas. Tal ênfase certamente fomentou a permanência de certezas rasas que permaneceram pelo simples fato de que os medievalistas pouco se interessaram pelas histórias em torno das práticas e dos personagens que viveram a educação no medievo. Foi como se apenas aquilo que espelhasse nossa sociedade despertasse interesse. Mas como se deu o processo de formação? A quais pedagogias essas pessoas foram submetidas? Vejamos um pouco dessa história.

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A Gramática foi a primeira das Sete Artes Liberais. Com a Retórica e a Dialética, formava o Trivium, as três vias necessárias aos conhecimentos relacionados à linguagem. Portanto, uma arte voltada não apenas para a escrita e a pronúncia correta das palavras, mas também para a compreensão elevada e crítica dos textos lidos. Pelo contato com a Gramática, aos poucos, os estudantes seriam capazes de organizar as ideias e as traduzir em narrativas de diferentes naturezas. Até mesmo as leis precisavam desta arte para ganhar organicidade e capacidade de disseminação. Por tudo isso, a referida arte constituía uma das bases do mundo civilizado, um mundo habitado por homens verdadeiramente livres e capazes de construir pensamentos próprios. Não compreende-la seria o mesmo que reduzir a vida humana à condição animalesca, prendê-la a ferros à condição dos que não seriam capazes de traduzir e conectar as ideias elevadas pertencentes ao universo.

Escolhemos trazer a proscênio assertivas de três mestres que à sua maneira escreveram sobre a Gramática nas primeiras décadas do século XII. Com os escritos deles em mãos, confiamos que não apenas será possível conhecer um pouco mais as percepções que deixaram acerca dessa arte, mas também que sua constante valorização indica que havia sim no medievo uma preocupação com as crianças e com os adolescentes. Vale lembrar que a Gramática era primeira etapa da formação de então, o que a tornava logo presente na vida de crianças e jovens estudantes. Portanto, as especificidades em torno de uma pedagogia que a valorizava como esteio da formação letrada de uma pessoa surgem como evidências que nos ajudam a solidificar nossa proposta.

O primeiro dos três mestres é o teólogo francês, Alain de Lille. Em suas andanças a procura de conhecimentos, Alain tornou-se discípulo de Pedro Abelardo, Gilberto de Poitiers e Teodorico de Chartres. Entre outros, tais personagens o aproximam de João de Salisbury, outro nome importante em nossa trama, e da cultura chartrense formada entre os séculos XI e XII. Escrito em forma de poema e dividido em nove livros, o Anticlaudianos de Alain de Lille traz uma série de considerações acerca das Artes Liberais e como estas estavam conectadas à formação do que ele definiu como "o homem perfeito". Como não poderia deixar de ser, a Gramática foi a primeira arte a surgir nas páginas da citada obra. Era evidente a preocupação de Alain de Lille com a harmonia entre os conhecimentos adquiridos: o todo nunca funcionará perfeitamente caso uma de suas partes estiver comprometida. Na verdade, a parte comprometida põe em risco toda a estrutura que logo entrará em colapso.

O contato com a cultura chartrense nos permite uma plausível conjetura: a conexão entre partes do Anticlaudianus e a conhecida teoria política de João de Salisbury estampada no Metalogicon. Para João, a estrutura política de uma sociedade tinha o rei como cabeça, porém, esta não funcionaria bem caso não houvesse uma perfeita harmonia entre ela e as demais partes. Da mesma forma, uma cabeça, ou seja, um rei despreparado levaria seu povo à ruína. É evidente que a harmonia pensada e desejada por Alain de Lille e João de Salisbury tinham propostas diferentes, mas uniam-se pelo desejo do bem comum a todos, quer fosse na organização política e social de uma determinada população ou na ascensão intelectual de seus membros.

Personagem que se tornou conhecido por suas andanças para além dos limites da Cristandade e por ser um dos primeiros testemunhos da influência árabe-islâmica no ocidente latinófono, Adelardo de Bath deixou para o próprio neto um conjunto de escritos que trazem as Artes Liberais como temática central. Descrita como a dama que cuida e alimenta seus rebentos, a Gramática também está presente em De eodem et diverso de Adelardo. É factível supor que existe na retórica de Adelardo uma origem monástica, o que nos permite vislumbrar que as fronteiras que teriam separado as escolas dos claustros das escolas das catedrais urbanas eram assaz porosas. Através delas, passavam livros e mestres, conhecimentos disseminados em textos escritos e também na oralidade. A partir desse manancial, Adelardo elevou a Gramática à condição de pilar da evolução humana, da civilidade. Percepção compartilhada por Alain de Lille e João de Salisbury.

Por fim, além das referências textuais, há diversas representações da Gramática encontradas na arte medieval. Igualmente chama atenção o fato da constante presença de um livro nas mãos das damas a representá-la – ou objetos semelhantes, como pergaminhos. Neste caso, não se trata apenas da evidente valorização da leitura proporcionada por essa arte. Provavelmente, trata-se da conexão que deveria ser feita entre o mestre e seus discípulo através dos textos lidos e debatidos. Sem estes, não haveria um ponto de partida para a orientação dos estudos. E os textos não eram apenas feitos de tinta sobre uma superfície branca, mas também de gestos e exemplos a serem observados pelos discípulos no convívio com seus mestres.

Conclusões
Um dia, a antiga tese de Philippe Ariès teve seu mérito. Abriu portas, indicou caminhos. Contudo, pelo bem do conhecimento histórico, ela deve ser superada. O surgimento de diferentes livros em momentos próximos e a importância da Gramática estampada nas paredes de diferentes catedrais de importantes centros urbanos dos séculos XI-XIII indicam que a sociedade medieval, ainda que em níveis e formas muito variadas, manifestava desde cedo interesse pela educação das crianças e dos jovens. Além disso, a grande atenção que a historiografia tradicionalmente destinou às universidades e a formas de ensino mais institucionalizadas que elas promoviam deve ser igualmente questionada, uma vez que esta acabou por ofuscar os métodos pedagógicos que por séculos permitiram a iniciação letrada de distintas gerações de estudantes.

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O que podemos aprender com os mestres e discípulos da Idade Média e com o legado pedagógico que deixaram? Fiz essa pergunta em diferentes oportunidades ao longo dos últimos cinco anos. Novamente, lanço mão de tal questionamento no encerramento deste ensaio. A resposta que será posta difere das que ofereci em ocasiões anteriores. Se aprender com os mestres medievais foi uma oportunidade de abertura existencial através do diálogo com o passado e do contato com novas experiências humanas, esta não pode ser transformada em um artefato ideológico a ser manipulado com o objetivo de se construir uma resposta, na verdade, uma alternativa radical a um suposto ensino doutrinador presente em nossas escolas.

Editoras com publicações cujo objetivo é atender um filão de mercado que pensa desta maneira crescem a olhos vistos. Boa parte do que publicam tem como base um novo eurocentrismo que se ergue sobre a certeza de que o cristianismo foi (e ainda é) o principal pilar a sustentar a produção de conhecimento e tecnologia no ocidente (CONRAD, 2016, p. 178-179). Outra faceta desse intrincado processo está na maneira como a extrema direita brasileira se apropria de elementos da cultura medieval para se dizer restauradora de tradições há tempos perdidas. Sustentar tais usos indevidos do passado é escamotear as razões que se escondem por trás do colapso de nosso sistema educacional: professores mal remunerados, falta de estrutura, salas lotadas, mal uso de verbas públicas, famílias desconectadas do espaço escolar, inexistência de uma cultura escolar longeva... Em outras palavras: o passado é para ensinar e nos permitir a capacidade de pensar e construir futuros alternativos e não para ser empregado como um artefato bélico carregado com quantidades maciças de desconhecimento.

Com efeito, depois de ser rotulada de Idade das Trevas, a Idade Média emerge com gradações idílicas dos discursos reacionários daqueles que se acreditam moralmente superiores e portadores das verdades que irão acabar com tudo isso que está aí para que uma nova era assim tenha início... Nenhuma concessão às trocas e enredamentos culturais que hoje povoam os debates acadêmicos dentro e fora do Brasil na esperança de por ao chão envelhecidos paradigmas eurocêntricos e nacionalistas. Em um contexto de enraizamento cada vez mais profundo da barbárie interior, é sempre bom frisar: olhar para o passado nos exige uma permanente vontade de aprender, jamais esta deve ser subjugada pela obsessão de se pintar com os tons cinzas do reducionismo um outro conveniente a ser destruído. E mais: usá-lo de maneira seletiva e como um mero contraponto, ou um conceito maleável, além do desvio do foco, transforma o medievo, e por conseguinte a pedagogia que nele existiu, em um paraíso perdido ao qual se deseja voltar sem levar em consideração as contradições presentes em qualquer período histórico. Isso sim é ideologia, e das mais tóxicas. Não questioná-la é aceitar que os incautos continuem a queimar livros mundo afora. De nossa parte, ao lado do abnegado bibliotecário de Sarajevo, antes que as fuligens ideológicas tornem o ar irrespirável e a vida mais cinza e difícil, preferimos o frio e a fome que permitam a compreensão e a preservação do conhecimento.

Referências
Carlile Lanzieri Júnior é Prof. Adjunto da UFMT e membro do grupo  Vivarium

Fontes Primárias
ALAN DE LILLE. Anticlaudianus. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1973.
Adelard of Bath: conversations with his nephew - On the same and the different, Questiones on natural Science and On birds. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 
The Metalogicon of John of Salisbury: a twelfth-century defense of the verbal and logical arts of the Trivium. Berkely / Los Angeles: University of California, 1971.

Fontes Secundárias
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
CONRAD, Sebastian. What is global history? New Jersey/Oxford: Princeton, 2016.
FOSSIER, Robert. Fossier. As pessoas na Idade Média. Petrópolis: Vozes, 2018.
LE GOFF, Jacques & TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LYNCH, Sarah B. Elementary and grammar education in late medieval France: Lyon, 1285-1530. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2017.
LYNCH, Sarah. Pupils and sources in late medieval Lyon. Espacio, tiempo y educación, v. 2, n. 2, p. 289-311, 2015.
LE GOFF, Jacques. São Luís: biografia. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 1999.
LYNCH, Sarah. The children's cloister: choirboys and space in late-medival cathedrals. Bulletin of International Medieval Research, n. 19, p. 44-61, 2013.
MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da Antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1989.
McGLYNN, Sean. A hierro y fuego: las atrocidades de la guerra en la Edad Media. Tradução: Tomás Fernández e Beatriz Eguibar. Barcelona: Crítica, 2009.
PARSONS, Ben. Punishment and medieval education. S/l: Boydell & Brewer, 2018.

8 comentários:

  1. Caro Carlile, que provocação maravilhosa! Eis minha cutucada para levar a reflexão adiante. Não te parece, como a mim parece, que é mais o olhar do historiador que abnega a presença e importância da criança no medievo? Digo isso pensando nas narrativas biográficas e hagiográficas do medievo. Especialmente estas segundas, quanto espaço dedicaram às narrativas das infâncias ilustres dos santos da igreja? Fossem negligenciadas, não deveriam os santos já nascerem adultos?

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  2. Caro Lukas, obrigado pela questão. É justamente isso que tento abordar. A sensação que tenho é que a historiografia, sobretudo a mais usada no Brasil , criou uma espécie de marco zero interpretativo. Poucos foram os que ousaram ir adiante. A saudável e necessária consulta às fontes revela justamente o contrário. Não apenas na hagiografia e nas biografias, também na arte podemos encontrá-las. O debate que pretendo desenvolver talvez não tenha sido devidamente explicitado nos limites que foram oferecidos para a formatação do texto.

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  3. Olá Carlile, tudo bem? Parabéns pelo texto! Quanto ao afeto na Idade Média, lembrei particularmente do Liber Manualis de Dhuoda, ainda mais recuado no tempo; com um pouco de esforço e paciência, certamente seria possível reconstituir outros exemplos da Primeira Idade Média e Alta Idade Média. Concordo contigo quanto ao "marco zero interpretativo" e queria saber sua opinião sobre isso: estamos presos ao argumento da autoridade e/ou trata-se de um comodismo confortável?

    Renan M. Birro

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  4. Caríssimo Renan, saudações. Creio que as duas coisas. Em linhas gerais, a historiografia francesa ainda se faz muito presente na academia brasileira. Embora a última década tenha fomentado novos diálogos com historiadores ingleses, americanos, alemães entre outros. Ademais, também sou crítico desse comodismo que para mim soa como uma espécie de manutenção de uma herança intelectual. Por fim, o Liber Manualis de Dhuoda é um entre os muitos exemplos possível. A valorização da Gramática e sua presença na arte ladeada por crianças é outro. Em breve, o artigo com toda a argumentação que proponho será publicado na íntegra.

    Obrigado!

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  5. Olá Carlile, parabéns pelo texto. Entretanto durante a leitura me surgiu uma dúvida. É notável que a saída do mundo antigo e a "migração" para a sociedade feudal trouxe diversas mudanças e fraturas na coluna vertebral das relações sociais, onde outrora você tinha as relações de escravidão entre povos conquistados e a aristocracia grega, onde os senhores eram guerreiros e senhores da guerra chamados por todos de aristoi (filho de ares), agora no mundo feudal temos o feudo, simbolo de confiança e união entre o nobre protetor e o agora saído da escravidão servo. Temos nesse mundo feudal também a relação de família como "Famulus" ou servos. Você acredita que foi talvez com essa transição que a criança começa a se tornar um objeto de preocupação? No sentido de uma "boca a mais" para servos que na baixa-idade média subsistiam, já que antes tínhamos a relação de escravidão social, e para o escravo isso não possui uma importância. Você acredita que talvez tais transformações levaram Philippe Ariès a escrever sobre seu contexto? Desde já obrigado
    Davi Santos Rocha

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    1. Caro Davi, obrigado pela questão. Creio que a criança sempre foi um objeto de preocupação. Minha crítica recai sobre uma certa historiografia que tenta enxergar indícios de modernidade a partir do século XII e, ainda que de forma não tão clara, transforma tudo que aconteceu antes em algo ruim que deveria ser superado. Neste sentido, o mundo feudal rural se transforma na antítese perfeita para o mundo urbano, mais racional e livre a emergir no XII. No que se refere ao contexto sobre o qual Ariès construiu sua argumentação, não me parece ter sido esta a ideia dele, uma vez que o recorte e as fontes por ele apresentadas foram bem específicos. Por fim, tenho a convicção (e algumas provas!) de que certamente a condição da criança melhorou sobremaneira na lenta transição entre o mundo antigo e o mundo medieval. Obrigado por me fazer pensar e espero que leia o artigo na íntegra a ser publicado em breve. Abraço!

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  6. Gemima Gomes de Carvalho Santos11 de abril de 2019 às 15:44

    Boa noite Carlile, parabéns pelo texto. Segundo a questão das crianças e jovens ignoradas na época, a falta que as crianças fazem nos escritos medievais, poderia está atrelado a, um trauma sofrido no passado que não se quer mostrar nos inscritos histórico da época?

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    1. Prezada Gemina, obrigado pela questão. De forma alguma. Na verdade, crianças e jovens estão muito presentes nas mais variadas fontes que a sociedade medieval nos deixou. Em relação ao impacto de algum trauma, há diversos autores que escreveram sobre os castigos sofridos durante a infância e a juventude. Castigos físicos com varas e açoites! Ao mencionarem a exposição a tal pedagogia, sempre o fazem de forma saudosa e reafirmam a necessidade de os indisciplinados sofrerem na pele pelos erros cometidos. O livro de Ben Parsons que cito no texto é uma referência para esse assunto. Abraço sincero!

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