O FENÔMENO DO PODER E DO LEGÍTIMO NA
ASCENSÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO
Dentre
as figuras de poder classicamente comentadas na experiência histórica, a figura
real de Carlos Magno se destaca em um momento de mudanças estruturais das relações
políticas no mundo ocidental pós-romano –para Eric Voegelin, a Idade Média
caracterizou-se como um período de integrações e desintegrações. As ações dos
protagonistas carolíngios precedentes, notadamente Carlos Martel (c.688-741) e
Pepino, o Breve (c.714-768) marcaram eventos fundamentais para o desenrolar da
história ocidental ao longo da primeira metade do século VIII, mas foi na
figura de Carlos Magno (742-814) que o novo lugar-comum das relações de poder
político no ocidente começa a tomar sua forma mais tradicional.
Mudanças
estruturais da política não significam apenas mudanças nas maneiras em que se
relacionam os impérios e reinos, os que dominam, mas também as maneiras em que
vivem aqueles sob sua esfera. Entender as formas gerais de um contexto social, da
estrutura da economia e da expressão cultural de um período implica em analisar
a maneira em que operam as relações de poder. Garantir um estudo sobre as
formas de experiência histórica através dos fenômenos humanos que têm seus
efeitos de longa duração da compreensão da realidade pelo homem e sua reação
perante as questões que se levantam no espaço e no tempo é se interessar e
entender porque se interessar pela força motriz do conhecimento humano, que é o
seu próprio entorno.
Desde a
deposição do imperador romano Rômulo Augusto por Odoacro, as relações de poder
do contexto do Império Romano do Ocidente, já decadentes, tomam novos rumos. A
crescente influência do Império Bizantino que se formava na estrutura social remanescente
do Império Romano Ocidental, a desagregação da influência econômica mediterrânica,
o estabelecimento da ortodoxia cristã e seu relacionamento com as heresias, o surgimento
da religião muçulmana e sua expansão e o crescimento dos reinos bárbaros no
continente são todos fenômenos das novas relações de poder no mundo ocidental que
moldam as ações posteriores, gerando suas bases para a formação do mundo moderno e
raízes culturais.
Os símbolos do passado e as relações
de poder
No Império
Romano,o status quo formado pela conduta
imperial refletiu sua política de centralização de poder durante séculos nas
relações direta e indiretamente afetadas pelo império e deixou expectativas acercada
atuação de uma figura de poder – de um governante – atrelada ao ideal da expansão dos
espaços de domínio, a grandiosidade de uma figura de poder, como um imperador,
influente a culturas tão alheias quanto a dos bárbaros migrantes, desejosos (e
também levados pelas circunstâncias) à absorção na esfera imperial romana
especialmente a partir do século IIId.C.
Bem como
em qualquer experiência histórica, os usos do passado constituem um discurso de
legitimação para um grupo social. Tomando como exemplo os primeiros séculos da
Idade Média, Matthew Innes afirma:
“O passado possuía uma presença bastante real nas sociedades do início da Idade Média. Ele podia prever um modelo legitimador para a atual ordem das coisas, explicando como as coisas deveriam ser ou, ainda, uma imagem de uma ordem ideal, uma Era de Ouro contra a qual o presente pode ser julgado. Em um grupo social, crenças compartilhadas sobre o passado eram uma fonte de identidade: a imagem de um passado comum informa um Wir-Gefühl(aqui, o equivalente à ipseidade de um povo, no original em inglês o autor apresenta como ‘us-ness’), e as características definidoras daquele passado identificaram aqueles que eram e não eram parte de ‘nós’ no presente” [Innes, 2004, p.1, tradução livre].
Pensando
assim, a associação com o ideal imperial no mundo pós-romano concebe a sensação
de legitimidade a um governante dos reinos bárbaros ascendentes. Por isso, nas
palavras de Jacques Le Goff, os herdeiros bárbaros “não se apresentavam como
inimigos, mas como admiradores das instituições romanas” [LeGoff, 2017, p.24],
e este sentimento de permanência do ideário romano não se mostrou apenas nas
mentalidades, como também na Igreja Católica, verdadeira sobrevivente do mundo
romano ocidental à posteridade. Sua continuação, no entanto, acompanhou o
contexto derradeiro do Império Romano do Ocidente – a dependência ao Oriente,
na forma do Império Bizantino, acompanhado de cismas doutrinários que, em
decorrência de um período formador de ortodoxias religiosas,tornaram-se cismas ideológicos
importantes na ação política entre duas fontes de poder, o ocidente e o oriente.
É importante ressaltar que este período entre os séculos IV e VI em que a
“crença certa era uma situação política ardente” [Wickham, 2009, p.383,
tradução livre] moldou também as apropriações realizadas pelos francos na sua idealização
do poder, já no século VIII.
O estabelecimento do poder
carolíngio
A
associação entre igreja e poder temporal aqui deve ser compreendida como um
fenômeno chave para a interpretação da evolução imperial a partir do início do
século VIII. Assumindo um projeto de reforma do meio social em inícios da Idade
Média, os reis carolíngios não incorporaram o ideal de sucessores de Israel, de
Davi e Salomão [Oakley, 2010], sem antes poder serem reconhecidos desta maneira
por este mesmo meio social. A constituição da legitimidade do poder que
permitiu suas conquistas militares e sociais passou pela lente formadora da Igreja
Católica. Antes de Carlos Magno, Carlos Martel e Pepino, o Breve instrumentalizaram
seu poderio militar no auxílio à Igreja quando ameaçada pela aura dos Lombardos,
mais imponente quando da fragmentação da atuação bizantina em Roma a partir do século
VI, também enfraquecida pelo novo contexto muçulmano. Esses feitos em si foram
suficientes para render aos carolíngios a associação ao poder legitimador da
instituição católica. Pepino fora ungido pelo papa Estevão II, que também lhe
conferiu o título de ‘patricius Romanorum’, com isso apresentando-o como defensor
e protetor de Roma, e legitimando a deposição do último rei merovíngio. Em
troca, Pepino doa territórios da península itálica conquistados. Para Chris
Wickham, a associação de Pepino com o papado e sua unção, a qual simboliza
práticas visigóticas e até mesmo do antigo testamento, representava a
necessidade que rei e papa tinham de cada um – o rei para assegurar uma
autoridade legítima para si, visto que a igreja representava um poder moral
não-franco e externo,e o papado para se proteger contra ataques, dada sua
situação vulnerável até então. “Os Carolíngios, apesar de serem a família
aristocrática mais forte na Frância desde os anos de 680, não eram ‘realeza’até
que dois papas sucessivos [...] dizerem que eram” [Wickham, 2009, p.377,
tradução livre]. Eric Voegelin comenta:
“Estava criado o precedente para a arbitragem papal em questões internacionais [...]Era, sem dúvida, a evocação de uma nova entidade política, porque o papa, segundo a lei imperial, não tinha o direito de conferir o título de ‘patricius Romanorum’ (nem o de ‘patricius’), nem o rei franco podia fazer “doações” de províncias imperiais” [Voegelin, 2012, p.67].
No
entanto, além de apropriações históricas que atuam no imaginário, é necessário
se ater a quais circunstâncias permitiram tais ideários florescerem. Carlos
Martel, avô de Carlos Magno, tivera seus feitos reconhecidos enquanto mordomo
do palácio merovíngio, especialmente pela vitória de seu exército na batalha de
Poitiers em 732.A expansão do território franco pelos mordomos do palácio
merovíngio, as largas conquistas que atribuíram o epíteto de ‘Martellus’ a
Carlos Martel, a deposição do último rei merovíngio Childerico III ea unção de
Pepino, o Breve como o primeiro rei da dinastia Carolíngia, suas atuações na
Lombardia em proteção ao papa e as ações subsequentes de Carlos Magno, seu
herdeiro, que foi coroado no natal de 800 como imperador pelo papa são todas
ações de grande impacto nos rumos da história.O destaque colocado nos feitos
carolíngios no discurso histórico é atestada na sobras dos cronistas dos anos
seguintes, que passaram a esquematizar a história dos francos colocando a
sucessão de eventos da corte merovíngia como etapas na ascensão dos carolíngios
ao poder[Fouracre, 2006].
Conforme
testemunhado na obra ‘Vita Caroli Magni’ de Einhard (c. 770-840), uma das obras
mais importantes para a preservação da história carolíngia, as atuações mais marcantes
de Carlos Magno são nas campanhas de guerra empreendidas contra os povos
circundantes, como os povos da Aquitânia, Lombardia, Bretões, a expedição na
Espanha e a longa guerra contra os Saxões, entre outras. Segundo o autor: “Naquelas
guerras ele tão nobremente aumentou o reino Franco, o qual ele havia recebido
de seu pai Pepino em tão grandiosa condição, que ele por pouco não dobrou seu
tamanho” [Einhard, The Life of Charlemagne, 15, tradução livre]. As conquistas
empreendidas estes anos permitiram uma espoliação tremenda aos cofres
carolíngios, e isso também deve ser levado em consideração quando se pensa no
poder administrativo carolíngio – desde Pepino a aliança com a Igreja já havia
garantido um abastecimento severo nos cofres do papado, através da
constituição, em 765, do dízimo obrigatório [Wickham, 2009].Além das ações
militares, e da riqueza iminente de seus aliados políticos, também o ideal de reforma
social em meio à desagregação política do ocidente no período precedente atuou
como um fenômeno que ofereceu engrandecimento à legitimação da figura política carolíngia.
A Admoestação Geral de 789 ofereceu a padronização dos cantos litúrgicos baseando-se
nos cânones dos concílios da Igreja, não apenas para permitir uma padronização
ao ofício clerical, mas também para que as liturgias desempenhassem uma espécie
de ‘papel social’ na comunidade cristã, e, ainda na proposta de reforma social,
o próprio fenômeno conhecido como o Renascimento Carolíngio, em que a educação pôde
ser amparada pelo auxílio da realeza, notadamente na figura do monge Alcuíno de
Iorque, que esteve na corte de Carlos Magno de 786 a 796 e continuou a dar
aulas no monastério de São Martinho, em Tours, e foi grandemente responsável
pelo florescimento intelectual do período [Wickham, 2009].
A
legitimidade conquistada pelas ações, tanto simbólicas como militares e
sociais, permitiu que as relações dos Carolíngios com o exterior fossem a par do
título imperial concebido em Carlos Magno. A centralização política em tamanha
escala, com um grau de organização administrativa a qual o ocidente não havia
possuído em muito tempo, forjou a legitimação que construiu a imagem de Carlos
Magno para seus contemporâneos e à posteridade. Notadamente, uma das passagens
mais significativas da biografia escrita por Einhard para explicitara imagem de
poder adquirida pelo imperador demonstra as alianças forjadas pela importância
em que este exerceu nos rumos história do ocidente e na maneira em que se
formou a estrutura da história medieval como um todo:
“Ele [Carlos Magno] também incrementou a glória de seu reino pela amizade oferecida a si por certos reis e pessoas. Desta maneira ele tão ganhou o favor de Alfonso, rei da Galícia e Astúrias, que quando ele enviou cartas ou legados a Carlos ele ordenou que em sua presença os legados deveriam referir-se a ele apenas como súdito de Carlos. Por sua generosidade ele havia ganhado à sua vontade os reis Irlandeses e estes por sua vez declararam que ele era nada a não ser seu senhor e que eles eram seus súditos e servos. Cartas que enviaram a ele sobrevivem e atestam a este tipo de sentimento perante ele. Ele possuía tais relações de amizade com Harun-al-Rashid, o rei dos Persas, que possuía quase todo o Oriente exceto a Índia, o qual ele possuía o favor mais do que quaisquer outros reis e príncipes no mundo e pensava que somente ele era merecedor de sua honra e generosidade. Certamente, quando os representantes de Carlos, os quais ele havia mandado com presentes ao mais santo sepulcro de nosso Senhor e Salvador e ao lugar de Sua ressurreição, veio a elee disseram sobre as vontades de seu senhor, ele não apenas permitiu que fizessem o que haviam pedido mas até concedeu a ele aquele lugar sagrado e salvífico para que fosse considerado em seu próprio poder. Ele enviou seus próprios legados de volta e enviou magníficos presentes a Carlos, robes e especiarias e outras riquezas do Oriente, e alguns anos atrás ele havia mandado um elefante, o único que possuía, a Carlos, que havia pedido por um. Os imperadores de Constantinopla, Nicéforo, Miguel e Leão, que estavam procurando a sua amizade e aliança, enviaram-no muitos embaixadores. Mas depois dele ter adquirido o título de imperador eles suspeitaram que poderia querer tomar o império, então ele estabeleceu um tratado tão firme com eles para que nenhum problema pudesse restar entre eles. Pois o poder dos Francos sempre foi suspeito aos Romanos e Gregos; como um provérbio Grego diz: ‘Tenha um Franco como amigo, não como vizinho’” [Einhard, The Life of Charlemagne, 16, tradução livre].
Considerações finais
Assim, a
força transformadora do meio social possui influência do meio imaginário.A
criação de uma figura de poder é influenciada pela percepção de sua ação, e
através do entendimento deste fenômeno pode-se interpretar o contexto da
criação do discurso histórico, bem como a atuação dos próprios personagens
históricos ante a figura de poder, como o caso das “relações internacionais”
aqui apresentado.
Em um
tempo de integrações e desintegrações, as ações políticas de uma dinastia
influenciaram a norma política do ocidente medieval durante séculos, sendo
apropriadas e reapropriadas ao longo dos anos. Através da análise histórica, a legitimação
do poder pode ser concebida ela mesma como uma operação de poder,
instrumentalizada para servir a propósitos políticos. A associação entre as
esferas eclesiástica e temporal, as campanhas militares e os projetos de
reforma social foram responsáveis pela legitimidade que se construiu em uma
figura tão influente na história do ocidente quanto os Carolíngios,
especialmente Carlos Magno. No entanto, não se deve perceber as ações que levam
à construção da legitimação do poder nos primeiros anos da Idade Média
meramente como planos de ascensão ao poder. Conforme nos lembra Jacques Le Goff ignorar
os dois papéis exercidos pela Igreja na Idade Média é não a entender de maneira
compreensível – ela opera enquanto “ideologia dominante apoiada por um poder
temporal considerável e como religião propriamente dita” [Le Goff, 2016, p.12].
Da mesma maneira, deve-se considerar aquilo que já foi comentado aqui como a
imagem da “norma imperial”remanescente nos herdeiros do Império Romano na
construção de seus reinos, bem como a necessidade de fortalecimento que sentiu
a Igreja Católica quando das querelas com o Império Bizantino a partir de meados
do século VII.
As
mudanças que ocorrem no tempo e a experiência sobre as mudanças e permanências
que moldam o indivíduo histórico refletem sua importância na grande concepção
humana do passado. A queda de um império milenar, o estabelecimento de reinos e
ascensão de dinastias que assumem o poder são eventos que marcam a tradição de
um povo,seus costumes, identidades e visões de mundo, e por isso moldam suas
concepções sobre os fenômenos que regem suas condutas sociais. Entender, por
exemplo,o porquê da associação entre duas esferas de poder – notadamente, aqui,
a esfera laica dos carolíngios e a esfera eclesiástica da Igreja Católica – é perceber
a importância da legitimação na constituição do poder. Aproximar-se do fenômeno
histórico por seus eventos focais necessita o acompanhamento das condições
materiais e das implicações imaginativas, derradeiramente geradora da
legitimação de uma autoridade, o que reflete as relações de poder então
instituídas na sociedade histórica. Com isso, os estudos sobre as relações em
que opera o poder, bem como a importância da legitimidade constituída nestas
relações podem trazer discussões aos mais diversos tempos históricos,
refletindo a ação do homem perante seu espaço e tempo e trazendo à mesa
discussões que podem também ser concernentes ao presente.
Referências
Guilherme
Tavares Lopes Balau é graduando em História pela UEL, orientado em sua pesquisa
pelo Professor Dr. Lukas Gabriel Grzybowksi.
FOURACRE, P. Frankish Gaul to 814. in MCKITTERICK, R.
(org.) The New Cambridge Medieval History – Volume II c.700-c.900. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006.
EINHARD. Life of Charlemagne. in GANZ, D (org). Einhard
and Notker The Stammerer: Two Lives of Charlemagne. Londres: Penguin Books, 2008.
E-Book.
INNES, M. Introduction: using the
past, interpreting the present, influencing the future. in HEN, Y; INNES, M.
The Uses of the Past in the Early Middle Ages. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004.
LE GOFF,
J. A civilização do ocidente medieval. Tradução de Monica Stahel. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2016.
OAKLEY, F. Empty Bottles of Gentilism: Kingship and
the Divine in Late Antiquity and the Early Middle Ages (to 1050). New Haven: Yale University Press,
2010.
VOEGELIN,
E. História das ideias políticas – volume II: Idade Média até Tomás de Aquino.
Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo, SP: É Realizações, 2012.
WICKHAM, C. The Inheritance of Rome: Illuminating the
Dark Ages 400-1000. Londres: Penguin Books, 2009. E-Book.
Olá, Guilherme! Gostaria, inicialmente, de parabenizá-lo pelo texto, pela profundidade alcançada, sobretudo por se tratar de um graduando. Parabéns!
ResponderExcluirDiante do exposto, gostaria que você comentasse um pouco a respeito de como você enxerga a construção do conhecimento histórico escolar acerca do Medievo. Se levarmos em conta a escola brasileira, sabemos que a Idade Média constitui um período longínquo e distante do aluno, tanto histórica quanto geograficamente, e isso permeia uma problemática do ponto de vista do despertar de interesse e da apreensão de saberes. Então como poderíamos fazer com que o nosso aluno consiga compreender a importância histórica da ascensão e queda de Carlos Magno, por exemplo, e/ou a influência da Igreja Católica na construção dos imaginários medievais e consequente legitimação do poder enquanto instituição social do período?
Espero ter sido claro e, sabendo da dificuldade que é discutir questões como essa, aguardo suas contribuições.
Um abraço,
Fábio Alexandre da Silva
Olá Fábio, obrigado pela excelente contribuição e por tomar o tempo para ler o trabalho, fico muito lisonjeado pelos elogios!
ExcluirAcho muito instigante a pergunta, pois permeia situações que condizem com as condições sociais do Brasil hoje em dia. A meu ver, há a necessidade de se colocar o aluno cada vez mais próximo do ensino de história no sentido de entender o propósito da educação histórica na sala de aula. Quando o aluno entende a construção do presente ser edificada no passado, ele entende o valor e o potencial de mudanças de uma ação no tempo do 'agora', e isso traz ao estudante a necessidade de se questionar sobre o mundo circundante e sobre aquilo que lhe é exposto no dia a dia. O estudo de fenômenos da história que nos são longínquos geograficamente dizem respeito não somente à formação da cultura ocidental a qual fazemos parte uma vez que nosso passado é a edificação do nosso presente, mas também ao espaço de estudo da história, a qual se atém à ação dinâmica do homem e suas relações no tempo e espaço. Para estudar a estrutura da relação de poder político na Idade Média nos aproximamos de determinada maneira, algo que faríamos de maneira específica também em um estudo sobre a ditadura militar no Brasil, por exemplo. No entanto, todos tratam do mesmo ser, e as estruturas de legitimação e de atuação simbólica estão todas lá para ser historicamente analisadas em suas próprias expressões temporais. A ascensão dos Carolíngios como um todo deve ser entendida como uma mudança das formas que regiam o mundo ocidental desde a aura imperial de Roma, no sentido em que acompanham o movimento da ascensão do sistema de relações feudal. Ao mesmo tempo demonstram como a representação de uma figura de poder, de um mundo ainda bastante romanizado, é importante na constituição de um poder político legitimado. Quanto à igreja, como nos apresenta Le Goff, ela deve ser analisada semelhantemente, como religião de fato e como instituição atrelada a sua característica temporal. As pessoas possuem suas crenças na religião, na figura divina, tanto agora como no passado. Isso é atestado na elaboração artística e dos saberes da Idade Média, seja nas expressões gráficas das iluminuras ou na apreensão de conceitos sobre a ordenação do mundo e a consequente visão de mundo na percepção da história. De modo semelhante a instituição social da Igreja Católica possui seus interesses enquanto instituição de fato, e o embate entre a mediação do poder laico x eclesiástico é um fenômeno que acompanha o ocidente medieval da queda do Império Romano aos esboços de formação dos Estados Modernos. Há momentos na história em que a ação de uma esfera da sociedade pode ser aproximada de maneira bastante clara, como o exemplo da mediação política da Igreja neste caso. Acho que não fica mais bem colocado quanto à citação que coloquei de Chris Wickham, em que comenta como os carolíngios foram uma das mais prolíficas famílias francas do período, e não haviam sido de fato 'realeza' até que dois papas (leia-se: um poder externo e não-franco) sucessivos dizerem que eram.
Espero ter esclarecido as questões levantadas, fazendo-me disponível a mais indagações, um abraço!
Guilherme Tavares Lopes Balau
Boa Noite Guilherme e participantes!
ResponderExcluirDe acordo com o texto percebe-se o Monopólio exercido pela Igreja Católica de Roma que durante a maior parte do Medievo praticamente ditou as regras.
Seria essa uma forma de política empreendida pela Igreja para não perder domínio deixando assim de lado práticas e dogmas seculares?
Valmir da Silva Lima.
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirOlá Valmir, obrigado pela contribuição.
ExcluirPrimeiramente, partindo da minha perspectiva bastante limitada de aluno de graduação eu não falaria especificamente de um monopólio exercido pela Igreja Católica. Se você se atentar às relações entre as famílias reais e o Sacro Império com a Igreja ao longo da Idade Média você se atentará ao fato de haver uma constante discussão entre poder secular e poder eclesiástico - de fato diversos reis tiveram a responsabilidade de atribuir títulos eclesiásticos a seu dispor, enquanto muitos teóricos da Igreja Católica ao longo do período não concordavam com essa prática, e isso desemboca, por exemplo, na Querela das Investiduras do século XI. Também a história de São Tomás de Cantuária está associada à disputa de poderes entre as duas esferas. A meu ver, o papel da Igreja e dos poderes seculares contra desalinhamentos dogmáticos tem a ver com a necessidade de centralização política e religiosa em face das relações externas com o Império Bizantino, e portanto se há a importância constante de realizar concílios para a determinação de dogmas e uniformização de ritos litúrgicos. Penso sempre na importância da consciência coletiva acerca do símbolo que representou o Império Romano nos primeiros estágios da Idade Média, principalmente a questão da estabilidade e alcance do Império ao longo dos anos. Espero que a resposta tenha ficado clara em face da questão, e qualquer indagação remanescente faço-me disponível!
Guilherme obrigado pela resposta.
ExcluirDa mesma forma que vc eu também sou um aluno de graduação.
E essa Temática Medieval principalmente envolvendo Igreja Católica praticamente é História Medieval em si e é tema de muito estudo.
Abraço.
Valmir da Silva Lima
Olá Guilherme! Sabemos que ao ensinar para o aluno sobre Idade Média é algo que para ele, se torna distante, pois não é um assunto tão falado pelas pessoas como por exemplo, primeira e segunda guerra mundial. Então a minha pergunta é de que forma podemos chegar mais perto desse aluno ao falar da Idade Média, pois até como sabemos, é um assunto extenso? - Luana de Almeida Ribeiro
ResponderExcluirOlá Luana, agradeço pela contribuição!
ExcluirDe fato, há temporalidades em que o entendimento de um aluno pode se limitar muito devido à diferente consciência histórica do seu próprio período, levando à apreensão anacrônica da história. A meu ver, a Idade Média no ensino é um período interessante para se abordar a questão de diferentes tempos históricos. É partindo desse período que o mundo ocidental começa a tomar sua forma moderna, através do desenvolvimento constante de instituições em expressões temporais diferentes ao longo do tempo. Acho que o elementar ao apresentar um recorte histórico como a Idade Média é justamente desmistificar a visão do senso-comum sobre isso, apresentando-a não como um buraco entre a Antiguidade Romana e o Renascimento Italiano, mas como um tempo dinâmico com suas próprias expressões - seja na literatura, na língua, na arte ou nas guerras ou nos próprios renascimentos do período.
Caro Guilherme, primeiro quero parabenizá-lo pelo texto.
ResponderExcluirPeço desculpas pela ignorância, mas não entendi o que você quis dizer com essa frase "Assumindo um projeto de reforma do meio social em inícios da Idade Média, os reis carolíngios não incorporaram o ideal de sucessores de Israel, de Davi e Salomão [Oakley, 2010], sem antes poder serem reconhecidos desta maneira por este mesmo meio social". Pois com Alcuíno de York e a Escola Palatina, Carlos já utilizá dentro dela o codinome de Davi, isso antes de sua coroação no natal de 800.
Não sei me fiz entender, mas deixo a pergunta mais clara. Quando os reis carolíngios obtiveram reconhecimento social de sucessores dos reis de Israel, isso é anterior a Carlos Magno?
Abraços fraternos.
Olá Gabriel, obrigado por sua contribuição.
ExcluirA respeito da associação de símbolos do antigo testamento com as figuras carolíngias, Oakley comenta não ser uma associação exclusiva aos francos, também aparecendo nas figuras de reis anglo-saxões da Inglaterra do mesmo período, na aura de um fenômeno que o autor chama de "sacralidade real". Portanto, essa associação é entendida como uma construção que começa a partir do século VIII por ação dos autores católicos. Na figura dos carolíngios, a prática de unção real que viria a legitimar a posição de poder do rei é em alusão a práticas dos reis do antigo testamento. Por isso, sua atribuição de sucessores de Israel, fator em si que já é anterior a Carlos Magno e aparece na unção de Pepino pelo papa para a deposição do último rei merovíngio. Se tiver mais interesse no assunto o livro que utilizei de Francis Oakley trata exatamente dessa questão de sacralidade real, "sacred kingship", especialmente o 7º capítulo da obra.
Espero ter sido claro!
Muito obrigado pela resposta Guilherme. Estendo o agradecimento pela indicação do capítulo utilizado, com certeza realizarei tal leitura.
ExcluirAbraços fraternos.