Ronny Costa Pereira


“TODOS HOMENS DESEJAM SABER! ”A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO NO “CONVIVIO” DE DANTE ALIGHIERI


O objetivo desse trabalho é analisar a concepção de educação que Dante Alighieri expõe em sua obra “Convívio” e compreender os alinhamentos e divergências que o discurso do poeta florentino possuiu com as visões da função da educação da nobreza, clero e a nova nobreza que crescia na Península Itálica. Inicialmente será apresentado um panorama acerca do papel da educação na Idade Média; seguido das ideias apontadas por Dante sobre as condições que fazem o homem poder seguir o caminho do conhecimento e se esse conceito de aprendizado é pautado em uma concepção que somente a aristocracia deveria possuir o direito a educação; e por fim compreender como os empecilhos que Dante coloca na busca ao conhecimento está interligado ao contexto medieval e político florentino.

Educação na Idade Média
A educação é e sempre foi um instrumento importante de poder social. Um maior desenvolvimento da transmissão de valores culturais, de técnicas avançadas, compreensão de dogmas e mesmo aprimoramento do sentimento de pertencimento a determinado grupo foram melhor desenvolvidospor meio da capacidade de escrita, leitura e da transmissão regular desses ensinamentos. Nesse sentido, a Educação é constantemente objeto de disputa de grupos e indivíduos que buscam definir sobre o que a educação deve se debruçar e quais grupos ela deve atingir.

Essas considerações se aplicam ao período medieval, em que o processo de educação formal esteve ligado aos nobres europeus e principalmente a Igreja Católica. O ensino ficou subordinado a dinâmica da Igreja, assim como toda sociedade medieval, que é uniformizada através do cristianismo. Os monges e bispos se tornam os agentes propagadores dos conhecimentos eclesiásticos, institucionais e pedagógicos de uma parcela considerável da população medieval, que vivia nas zonas rurais em sua maioria, e dessa maneira tinham nas igrejas seu posto de referência aos ensinamentos oficiais[LE GOFF,2007].

Os nobres possuíam o ensino formal dentre seus hábitos culturais, enquanto os camponeses e citadinos, que em sua maioria eram analfabetos, tinham na Igreja seu único local de aprendizagem de escrita, leitura e estudos. E essa educação se tornou cada vez mais necessária, como salienta Verger:

“Mesmo em sociedades como a sociedade ocidental na Idade Média, em que a maioria da população era analfabeta e a palavra oral, frequentemente acompanhada de um gestual codificado, certamente preponderante como suporte da comunicação, o escrito, sob múltiplas formas, como simples ligação ou anexo da oralidade e da memória, ocupa na realidade um lugar considerável, ainda que difuso e frequentemente imperceptível. Sobretudo a partir dos séculos XII e XIII, quase nenhuma forma de vida religiosa, judiciaria, administrativa, econômica, para não falar das relações correntes entre indivíduos, as famílias ou grupos sociais, pode manter sem o recurso, ao menos marginal, a escrita, latina ou vernacular, e logo, a homens capazes de manejá-la. ” [VERGER, 2001. p.10]

E essa educação medieval que esteve sobre controle da Igreja Católica e supervisão da nobreza, no período tradicionalmente chamado de Baixa Idade Média [séculos XII-XV], passou por um processo de transformação. O crescimento urbano no século XII impulsionou não só economicamente as cidades europeias, mas também a organização de ensino. O que Le Goff categoriza de nascimento do intelectual, é o processo em que o clero perde a exclusividade do ensino, que passou a ser disputado também por membros da nobreza e os novos nobres, composta em sua maioria por comerciantes.

Dentre os locais mais atingidos por essas mudanças, a Península Itálica se destaca. O crescimento urbano e comercial fez com que cidades como Florença e Veneza estivessem entre as mais populosas da Europa medieval, e sofressem essa mudança nos objetivos e protagonistas do processo educacional medieval. A comuna de Florença, mesmo não possuindo uma universidade, passou por um aumento considerável de tutores não eclesiásticos, leituras em praças públicas, ensino da leitura e escrita de poemas em latim e florentino[GILLI, 2011].

Dante o “Convívio” e a Educação
É nesse contexto que se situa Dante Alighieri. Poeta florentino, nascido provavelmente em 1265, Dante, de acordo com Richard Lewis, nasceu de uma família guelfa da pequena nobreza, que provavelmente não possuía influência política ou econômica na cidade; Dante estudou em um colégio franciscano, onde conheceu o poeta BrunettoLatini, que é seu primeiro guia nos caminhos da poesia e com quem aprimorou seus estudos dos clássicos latinos. E após isso Dante foi para Bolonha, já que a cidade de Florença não possuía universidades na época. Lá se aprofundou nas vertentes agostinianas e tomistas da teologia medieval.

Dante passou a escrever um ano após a morte de seu pai, fato esse considerado importante, pois com a morte do pai, Dante assumiu a liderança da família, que no período estava financeiramente frágil, e necessitou do auxílio de famílias nobres mais abastadas para se manter, e a utilização da poesia foi a maneira que Dante encontrou de se aproximar de círculos de nobres e conseguir maior estima entre eles.

Dante entra na política florentina em 1295 e em 1300 é exilado devido a um complô entre o Vaticano e o grupo político dos guelfos, que consideravam as posturas de Dante em diminuir as influências políticas da Igreja em Florença, prejudicial ao andamento da mesma. É nesse período de exilio que dentre outras obras, o poeta escreve o “Convívio”.

A obra “Convívio” é um livro que se pretende oferecer por meio de tratados, “banquetes em louvor da sabedoria”, levando todas as formas do conhecimento sobre a poesia, a teologia, amor, filosofia e política para aqueles que não possuem o domínio do latim. Dessa forma, a obra foi escrita em florentino, a língua popular do período. O poeta possuía a ideia inicial de concluir a obra em quinze tratados, porém devido a Divina Comédia, Dante só finaliza quatro desses tratados.

Os tratados são divididos da seguinte maneira. No primeiro o poeta faz uma introdução geral da obra e comenta sobre as formas de se alcançar o conhecimento; o segundo e o terceiro tratados são compostos por poemas de Dante e das maneiras que os mesmos devem ser compreendidos, como uma busca pelo amor que leva a sabedoria; e o quarto tratado é reservado ao assunto da nobreza do homem e a maneira que a educação está intrinsecamente ligada a isso.

Logo no início do primeiro tratado, o poeta deixa explicito seu objetivo o sentido que ele possui. Levar o conhecimento para aqueles que não são capazes de alcança-los sozinhos e que isso deve ser feito pois “todos homens desejam naturalmente saber”[Convívio I, I]. É então que Dante elenca dois pontos internos que impedem o homem de buscar esse conhecimento:

“Internamente ao homem podem existir dois defeitos e impedimentos: um no que se refere ao corpo, outro no que se refere à alma. No corpo, é quando as partes estão indevidamente dispostas, de modo que nada podem perceber, assim como os surdos, os mudos e seus similares. Na alma, é quando a malícia ali prevalece, fazendo-a seguir viciosos deleites pelos quais o homem recebe tanto engano que toda a coisa vilipendia. ” [Convívio, Tratado I, I]

Aqui Dante aponta um problema material e um espiritual que impedem o homem de buscar a educação, e esses dois impedimentos por serem internos, podem ser encontrados em homens de todas classes sociais, sendo assim internamente, um camponês e um nobre igualmente possíveis de não serem capazes de buscar o conhecimento. Em seguida o poeta aponta os dois problemas externos que impossibilitam a relação entre o homem e a educação, e nesse ponto que algumas características são modificadas:

“Externamente ao homem, duas razões podem semelhantemente ser consideradas, uma das quais induz à necessidade, a outra à preguiça. A primeira são os cuidados familiar e civil, que necessariamente detém para si a maioria dos homens, de modo que não podem permanecer no ócio da contemplação. A outra é a carência do lugar onde a pessoa nasceu e cresceu, que às vezes não apenas a priva de qualquer estudo, mas a deixa longe de pessoas estudiosas. ” [Convívio Tratado I, I]

Nesse ponto o florentino pontua as condições sociais do indivíduo como fator determinante para a capacidade de aprendizado ser ou não possível. A necessidade de tempo para estudos e reflexões não seria possível para ninguém além dos nobres e clérigos, e a ausência de “pares” para compartilhar o conhecimento também não seria possível para camponeses que viviam em comunidades rurais distantes dos grandes centros urbanos. Nesse pensamento de Dante é interessante notar como os pontos elencados pelo mesmo estão intrinsecamente ligados a nova forma de educação que surgia no século XII e ao mesmo tempo se conecta com o modo tradicional de educação do período. A relação entre educação e estar próximo de outros sujeitos também em processo de aprendizagem é o modo típico de ensino que as universidades citadinas desenvolvem no período; enquanto a necessidade do tempo livre para se ensinar é uma argumentação que era tradicionalmente da nobreza pré universidades.

Essa forma de pensamento conversa com a concepção de educação na baixa idade média definido no dicionário da Idade Média como:

“...a educação na Idade Média foi um luxo sempre reservado a minoria; estava principalmente organizada para benefício do sexo masculino e, na medida em que era acessível ao leigo, o mais provável eque fosse solicitada, na grande maioria dos casos, por aqueles que precisavam adquirir algum conhecimento no governo, na administração ou no comercio, e por aqueles que podiam se permitir dedicar-lhe seu tempo e seus recursos materiais. Na pratica, isso significou, na maior parte da Idade Média, demanda aristocrática ou urbana. ”[LYON, 1997. p.312]

E Dante ao se alinhar a esse pensamento, descreve em seu tratado que essas justificativas são da forma que são devido à vontade divina, e que pertence aos nobres o papel de detentores do conhecimento e patronos da educação[Convívio Tratado I, III]. Essa definição da educação ser pertencente aos nobres, é reflexo da própria vida do poeta, que de família de pequena nobreza, teve no auxílio dos nobres o acesso à educação e considera o espaço dos camponeses e da plebe como avessos a uma possibilidade de desenvolvimento da educação. De forma que ele coloca:

“Portanto, eu – que não me sento à bendita mesa, mas que fugi do alimento da plebe, movido pela misericórdia, recolho aos pés daqueles que lá se sentam o que deles cai; e, sem esquecer de mim mesmo, conheço a mísera vida daqueles que atrás de mim deixei, pela doçura que sinto naquilo que pouco a pouco recolho – tenho algo reservado para os miseráveis que há algum tempo demonstrei aos seus olhos, pelo que os fiz intensamente desejosos. ” [Convívio Tratado I, I]

Dante novamente nesse ponto mostra que o papel a quem o mesmo delega a educação é um pouco mais complexo do que somente a ideia que um nobre defendendo os interesses da nobreza. O mesmo se coloca não como um nobre, mas sim alguém que esteve entre nobres e assim adquiriu o conhecimento, e que agora transmite essa educação aos menos favorecidos que ele. Se por um lado o poeta condiz com o determinismo religioso medieval que cada classe social tem papeis e funções especificas, por outro, ele partilha das ideias propagadas pelos novos nobres, universitários e os novos pensadores citadinos, de que o conhecimento devia ser transmitido para além dos nobres e não ensinado somente pela igreja.Essas colocações são relacionadas a vida de Dante novamente. Expulso de Florença por ser contrário ao domínio absoluto da Igreja nos assuntos da comuna, a educação faz parte dos pontos que Dante buscou retirar da exclusividade eclesiástica.

Junto a isso, outro ponto é preponderante na importância que Dante atribui a educação, e é a questão identitária. O mesmo ficou conhecido como um dos formadores da língua italiana, devido a sua constância em propaga lá no lugar do latim, que em seu tempo era a língua oficial para acesso ao conhecimento escrito. Ao escrever o “Convívio” em florentino, o mesmo buscou uma maior divulgação do conhecimento[seja pela leitura ou escrita] quanto ao associar a formalização da educação por meio do florentino, uma forma de definição identitária de seu povo, de forma que o mesmo pontua:

“Este meu idioma popular foi o vínculo de meus pais que com ele se expressavam...é evidente que ele concorreu para minha educação e assim é alguma coisa do meu ser. Além disso, foi este meu idioma popular que me introduziu no caminho da ciência, que é a mais alta perfeição, porquanto com ele penetrei no latim e com este me familiarizei, latim que foi depois meu caminho para avançar mais ainda. ”[Convívio Tratado I, XIII]

Dessa maneira Dante buscou seguir os passos de seus predecessores, que utilizaram da língua popular para iniciar os ensinamentos e assim passar para o latim. O poeta então tencionou utilizar o fiorentino para não somente de introdução “verdadeiro saber”, mas sim como forma de acesso ao conhecimento em si.

Reflexões finais
Com o “Convívio”, Dante buscou criar uma reflexão de que como a educação formal devia se tornar menos seleta, por meio da escrita em florentino e do ensino não exclusivo de clérigos, pensamentos tipicamente intelectuais urbanos de seu tempo. Ao mesmo tempo ele restringe e legitima o controle sobre a educação aos nobres e seus filiados. Em suma, o que Dante propôs com seu tratado foi um desenvolvimento mais amplo do ensino, e não só um controle dos nobres sobre o ensino, mas também uma obrigatoriedade moral dos mesmos transmitirem os conhecimentos que foram divinamente privilegiados a obter. Esse projeto de Dante é expandido e alcançado na Divina Comédia.

Referências:
Ronny Costa Pereira é graduado em Licenciatura em História na Universidade Estadual de Feira de Santana.

ALIGHIERI, Dante. Convívio. Lisboa: Guimarães Editores, 1992.

BRITO, E. F. Tradução parcial e comentada do Convívio de Dante. TradTerm, São Paulo, v. 20, dezembro/2012, pág. 68-94.

GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval: (séculos XII-XIV). Campinas: Editora da Unicamp; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.

LE GOFF, Jacques. Raízes medievais da Europa. Rio de janeiro, vozes, 2007.
______. Os intelectuais na Idade Média. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

LEWIS, R.W.B. Dante. Rio de Janeiro, Objetiva, 2002.

LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média / organizado por/ tradução, Alvaro Cabral; revisão técnica, Hilário Franco Junior. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

VERGER, Jacques. Cultura, Ensino e Sociedade no Ocidente. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.

                                                               

5 comentários:

  1. Olá Ronny, tudo bem? Obrigado pelo texto! Você percebe alguma semelhança entre a proposta de Dante e algumas sugestões recentes para a Educação brasileira contemporânea?

    Renan M. Birro

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    1. Olá Renan!

      Vejo sim e infelizmente os pontos negativos. Com as devidas diferenças históricas e sociais, a concepção do conhecimento sendo um "banquete" a ser repartido por aqueles que estão na mesa, e as migalhas que sobrarem serem distribuidas aos famintos é um discurso e prática já frequente quando se trata de medidas para melhoria educacional, e recentemente se expandiu. A fala do ex-ministro da educação Ricardo Velez, em que o mesmo diz que a educação de nivel superior não deveria ser para todos e somente a "elite intelectual " poderia acessa la pois teria condições econômicas para tal; ou a PEC 241 que na argumentação no corte e congelamento orçamentário da educação, coloca os espaços de ensino marginais aos grandes centros urbanos (ensino rural, indígena e quilombola) e de indivíduos com necessidades especiais como primeiros na linha de corte, pois já estão "naturalmente desfavorecidos ", sendo assim a prioridade os espaços "mais nobres" do ensino público.

      Já as restrições ao ensino ser guiado por instituições religiosas e a ampliação da educação para os que não possuem facil acesso, são propostas apresentadas por Dante que vejo os órgãos e gestores públicos indo no sentido contrario, infelizmente.

      Ronny Costa Pereira

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  2. Boa Tarde Ronny, Parabéns pelo texto! Uma vez que a educação na Idade Média era limitada a um grupo especifico de indivíduos, se caracterizando por ser excludente, é possível afirmar que a mesma servia como forma de controle social naquele determinado contexto?

    Alessandro Lopes Campelo

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    1. Olá Alessandro!

      Considero sim, a educação foi um importante mecanismo de controle social durante a idade média. Seja por meio da Igreja que possuia o monopólio da leitura e escrita dos textos sagrados, até a nobreza que resguardava titulos e cargos de importante grau social (juiz, medico, lorde) para aqueles que possuiem conhecimento formal da escrita e leitura. Com uma população extretamente reduzida de letrados e poucas formas de acesso, a educação formal foi um forte regulador social .

      Ronny Costa Pereira

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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