“TODOS
HOMENS DESEJAM SABER! ”A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO NO “CONVIVIO” DE DANTE ALIGHIERI
O objetivo desse
trabalho é analisar a concepção de educação que Dante Alighieri expõe em sua
obra “Convívio” e compreender os alinhamentos e divergências que o discurso do
poeta florentino possuiu com as visões da função da educação da nobreza, clero
e a nova nobreza que crescia na Península Itálica. Inicialmente será
apresentado um panorama acerca do papel da educação na Idade Média; seguido das
ideias apontadas por Dante sobre as condições que fazem o homem poder seguir o
caminho do conhecimento e se esse conceito de aprendizado é pautado em uma
concepção que somente a aristocracia deveria possuir o direito a educação; e
por fim compreender como os empecilhos que Dante coloca na busca ao
conhecimento está interligado ao contexto medieval e político florentino.
Educação
na Idade Média
A educação é e sempre
foi um instrumento importante de poder social. Um maior desenvolvimento da
transmissão de valores culturais, de técnicas avançadas, compreensão de dogmas
e mesmo aprimoramento do sentimento de pertencimento a determinado grupo foram
melhor desenvolvidospor meio da capacidade de escrita, leitura e da transmissão
regular desses ensinamentos. Nesse sentido, a Educação é constantemente objeto
de disputa de grupos e indivíduos que buscam definir sobre o que a educação
deve se debruçar e quais grupos ela deve atingir.
Essas considerações se
aplicam ao período medieval, em que o processo de educação formal esteve ligado
aos nobres europeus e principalmente a Igreja Católica. O ensino ficou
subordinado a dinâmica da Igreja, assim como toda sociedade medieval, que é
uniformizada através do cristianismo. Os monges e bispos se tornam os agentes
propagadores dos conhecimentos eclesiásticos, institucionais e pedagógicos de
uma parcela considerável da população medieval, que vivia nas zonas rurais em
sua maioria, e dessa maneira tinham nas igrejas seu posto de referência aos
ensinamentos oficiais[LE GOFF,2007].
Os nobres possuíam o
ensino formal dentre seus hábitos culturais, enquanto os camponeses e
citadinos, que em sua maioria eram analfabetos, tinham na Igreja seu único
local de aprendizagem de escrita, leitura e estudos. E essa educação se tornou
cada vez mais necessária, como salienta Verger:
“Mesmo em sociedades como a sociedade ocidental na Idade Média, em que a maioria da população era analfabeta e a palavra oral, frequentemente acompanhada de um gestual codificado, certamente preponderante como suporte da comunicação, o escrito, sob múltiplas formas, como simples ligação ou anexo da oralidade e da memória, ocupa na realidade um lugar considerável, ainda que difuso e frequentemente imperceptível. Sobretudo a partir dos séculos XII e XIII, quase nenhuma forma de vida religiosa, judiciaria, administrativa, econômica, para não falar das relações correntes entre indivíduos, as famílias ou grupos sociais, pode manter sem o recurso, ao menos marginal, a escrita, latina ou vernacular, e logo, a homens capazes de manejá-la. ” [VERGER, 2001. p.10]
E essa educação
medieval que esteve sobre controle da Igreja Católica e supervisão da nobreza,
no período tradicionalmente chamado de Baixa Idade Média [séculos XII-XV], passou
por um processo de transformação. O crescimento urbano no século XII
impulsionou não só economicamente as cidades europeias, mas também a
organização de ensino. O que Le Goff categoriza de nascimento do intelectual, é
o processo em que o clero perde a exclusividade do ensino, que passou a ser
disputado também por membros da nobreza e os novos nobres, composta em sua
maioria por comerciantes.
Dentre os locais mais
atingidos por essas mudanças, a Península Itálica se destaca. O crescimento
urbano e comercial fez com que cidades como Florença e Veneza estivessem entre
as mais populosas da Europa medieval, e sofressem essa mudança nos objetivos e
protagonistas do processo educacional medieval. A comuna de Florença, mesmo não
possuindo uma universidade, passou por um aumento considerável de tutores não
eclesiásticos, leituras em praças públicas, ensino da leitura e escrita de
poemas em latim e florentino[GILLI, 2011].
Dante
o “Convívio” e a Educação
É nesse contexto que
se situa Dante Alighieri. Poeta florentino, nascido provavelmente em 1265,
Dante, de acordo com Richard Lewis, nasceu de uma família guelfa da pequena
nobreza, que provavelmente não possuía influência política ou econômica na
cidade; Dante estudou em um colégio franciscano, onde conheceu o poeta
BrunettoLatini, que é seu primeiro guia nos caminhos da poesia e com quem
aprimorou seus estudos dos clássicos latinos. E após isso Dante foi para
Bolonha, já que a cidade de Florença não possuía universidades na época. Lá se
aprofundou nas vertentes agostinianas e tomistas da teologia medieval.
Dante passou a
escrever um ano após a morte de seu pai, fato esse considerado importante, pois
com a morte do pai, Dante assumiu a liderança da família, que no período estava
financeiramente frágil, e necessitou do auxílio de famílias nobres mais
abastadas para se manter, e a utilização da poesia foi a maneira que Dante
encontrou de se aproximar de círculos de nobres e conseguir maior estima entre
eles.
Dante entra na
política florentina em 1295 e em 1300 é exilado devido a um complô entre o
Vaticano e o grupo político dos guelfos, que consideravam as posturas de Dante
em diminuir as influências políticas da Igreja em Florença, prejudicial ao
andamento da mesma. É nesse período de exilio que dentre outras obras, o poeta
escreve o “Convívio”.
A obra “Convívio” é um
livro que se pretende oferecer por meio de tratados, “banquetes em louvor da
sabedoria”, levando todas as formas do conhecimento sobre a poesia, a teologia,
amor, filosofia e política para aqueles que não possuem o domínio do latim.
Dessa forma, a obra foi escrita em florentino, a língua popular do período. O
poeta possuía a ideia inicial de concluir a obra em quinze tratados, porém
devido a Divina Comédia, Dante só finaliza quatro desses tratados.
Os tratados são
divididos da seguinte maneira. No primeiro o poeta faz uma introdução geral da
obra e comenta sobre as formas de se alcançar o conhecimento; o segundo e o
terceiro tratados são compostos por poemas de Dante e das maneiras que os
mesmos devem ser compreendidos, como uma busca pelo amor que leva a sabedoria;
e o quarto tratado é reservado ao assunto da nobreza do homem e a maneira que a
educação está intrinsecamente ligada a isso.
Logo no início do
primeiro tratado, o poeta deixa explicito seu objetivo o sentido que ele
possui. Levar o conhecimento para aqueles que não são capazes de alcança-los
sozinhos e que isso deve ser feito pois “todos homens desejam naturalmente
saber”[Convívio I, I]. É então que Dante elenca dois pontos internos que impedem
o homem de buscar esse conhecimento:
“Internamente ao homem podem existir dois defeitos e impedimentos: um no que se refere ao corpo, outro no que se refere à alma. No corpo, é quando as partes estão indevidamente dispostas, de modo que nada podem perceber, assim como os surdos, os mudos e seus similares. Na alma, é quando a malícia ali prevalece, fazendo-a seguir viciosos deleites pelos quais o homem recebe tanto engano que toda a coisa vilipendia. ” [Convívio, Tratado I, I]
Aqui Dante aponta um
problema material e um espiritual que impedem o homem de buscar a educação, e
esses dois impedimentos por serem internos, podem ser encontrados em homens de
todas classes sociais, sendo assim internamente, um camponês e um nobre
igualmente possíveis de não serem capazes de buscar o conhecimento. Em seguida
o poeta aponta os dois problemas externos que impossibilitam a relação entre o
homem e a educação, e nesse ponto que algumas características são modificadas:
“Externamente ao homem, duas razões podem semelhantemente ser consideradas, uma das quais induz à necessidade, a outra à preguiça. A primeira são os cuidados familiar e civil, que necessariamente detém para si a maioria dos homens, de modo que não podem permanecer no ócio da contemplação. A outra é a carência do lugar onde a pessoa nasceu e cresceu, que às vezes não apenas a priva de qualquer estudo, mas a deixa longe de pessoas estudiosas. ” [Convívio Tratado I, I]
Nesse ponto o
florentino pontua as condições sociais do indivíduo como fator determinante
para a capacidade de aprendizado ser ou não possível. A necessidade de tempo
para estudos e reflexões não seria possível para ninguém além dos nobres e
clérigos, e a ausência de “pares” para compartilhar o conhecimento também não
seria possível para camponeses que viviam em comunidades rurais distantes dos
grandes centros urbanos. Nesse pensamento de Dante é interessante notar como os
pontos elencados pelo mesmo estão intrinsecamente ligados a nova forma de
educação que surgia no século XII e ao mesmo tempo se conecta com o modo
tradicional de educação do período. A relação entre educação e estar próximo de
outros sujeitos também em processo de aprendizagem é o modo típico de ensino
que as universidades citadinas desenvolvem no período; enquanto a necessidade
do tempo livre para se ensinar é uma argumentação que era tradicionalmente da
nobreza pré universidades.
Essa forma de
pensamento conversa com a concepção de educação na baixa idade média definido
no dicionário da Idade Média como:
“...a educação na Idade Média foi um luxo sempre reservado a minoria; estava principalmente organizada para benefício do sexo masculino e, na medida em que era acessível ao leigo, o mais provável eque fosse solicitada, na grande maioria dos casos, por aqueles que precisavam adquirir algum conhecimento no governo, na administração ou no comercio, e por aqueles que podiam se permitir dedicar-lhe seu tempo e seus recursos materiais. Na pratica, isso significou, na maior parte da Idade Média, demanda aristocrática ou urbana. ”[LYON, 1997. p.312]
E Dante ao se alinhar
a esse pensamento, descreve em seu tratado que essas justificativas são da
forma que são devido à vontade divina, e que pertence aos nobres o papel de
detentores do conhecimento e patronos da educação[Convívio Tratado I, III].
Essa definição da educação ser pertencente aos nobres, é reflexo da própria
vida do poeta, que de família de pequena nobreza, teve no auxílio dos nobres o
acesso à educação e considera o espaço dos camponeses e da plebe como avessos a
uma possibilidade de desenvolvimento da educação. De forma que ele coloca:
“Portanto, eu – que não me sento à bendita mesa, mas que fugi do alimento da plebe, movido pela misericórdia, recolho aos pés daqueles que lá se sentam o que deles cai; e, sem esquecer de mim mesmo, conheço a mísera vida daqueles que atrás de mim deixei, pela doçura que sinto naquilo que pouco a pouco recolho – tenho algo reservado para os miseráveis que há algum tempo demonstrei aos seus olhos, pelo que os fiz intensamente desejosos. ” [Convívio Tratado I, I]
Dante novamente nesse
ponto mostra que o papel a quem o mesmo delega a educação é um pouco mais
complexo do que somente a ideia que um nobre defendendo os interesses da
nobreza. O mesmo se coloca não como um nobre, mas sim alguém que esteve entre
nobres e assim adquiriu o conhecimento, e que agora transmite essa educação aos
menos favorecidos que ele. Se por um lado o poeta condiz com o determinismo
religioso medieval que cada classe social tem papeis e funções especificas, por
outro, ele partilha das ideias propagadas pelos novos nobres, universitários e
os novos pensadores citadinos, de que o conhecimento devia ser transmitido para
além dos nobres e não ensinado somente pela igreja.Essas colocações são
relacionadas a vida de Dante novamente. Expulso de Florença por ser contrário
ao domínio absoluto da Igreja nos assuntos da comuna, a educação faz parte dos
pontos que Dante buscou retirar da exclusividade eclesiástica.
Junto a isso, outro
ponto é preponderante na importância que Dante atribui a educação, e é a
questão identitária. O mesmo ficou conhecido como um dos formadores da língua
italiana, devido a sua constância em propaga lá no lugar do latim, que em seu
tempo era a língua oficial para acesso ao conhecimento escrito. Ao escrever o
“Convívio” em florentino, o mesmo buscou uma maior divulgação do
conhecimento[seja pela leitura ou escrita] quanto ao associar a formalização da
educação por meio do florentino, uma forma de definição identitária de seu
povo, de forma que o mesmo pontua:
“Este meu idioma popular foi o vínculo de meus pais que com ele se expressavam...é evidente que ele concorreu para minha educação e assim é alguma coisa do meu ser. Além disso, foi este meu idioma popular que me introduziu no caminho da ciência, que é a mais alta perfeição, porquanto com ele penetrei no latim e com este me familiarizei, latim que foi depois meu caminho para avançar mais ainda. ”[Convívio Tratado I, XIII]
Dessa maneira Dante
buscou seguir os passos de seus predecessores, que utilizaram da língua popular
para iniciar os ensinamentos e assim passar para o latim. O poeta então
tencionou utilizar o fiorentino para não somente de introdução “verdadeiro
saber”, mas sim como forma de acesso ao conhecimento em si.
Reflexões
finais
Com o “Convívio”,
Dante buscou criar uma reflexão de que como a educação formal devia se tornar menos
seleta, por meio da escrita em florentino e do ensino não exclusivo de
clérigos, pensamentos tipicamente intelectuais urbanos de seu tempo. Ao mesmo
tempo ele restringe e legitima o controle sobre a educação aos nobres e seus
filiados. Em suma, o que Dante propôs com seu tratado foi um desenvolvimento
mais amplo do ensino, e não só um controle dos nobres sobre o ensino, mas
também uma obrigatoriedade moral dos mesmos transmitirem os conhecimentos que
foram divinamente privilegiados a obter. Esse projeto de Dante é expandido e
alcançado na Divina Comédia.
Referências:
Ronny Costa Pereira é graduado em Licenciatura
em História na Universidade Estadual de Feira de Santana.
ALIGHIERI, Dante. Convívio.
Lisboa: Guimarães Editores, 1992.
BRITO, E. F. Tradução parcial e comentada do Convívio de
Dante. TradTerm, São Paulo, v. 20, dezembro/2012, pág. 68-94.
GILLI, Patrick.
Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval: (séculos XII-XIV). Campinas:
Editora da Unicamp; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
LE GOFF, Jacques.
Raízes medievais da Europa. Rio de janeiro, vozes, 2007.
______. Os
intelectuais na Idade Média. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2003.
LEWIS, R.W.B. Dante.
Rio de Janeiro, Objetiva, 2002.
LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média / organizado
por/ tradução, Alvaro Cabral; revisão técnica, Hilário Franco Junior. — Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
VERGER, Jacques.
Cultura, Ensino e Sociedade no Ocidente. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.
Olá Ronny, tudo bem? Obrigado pelo texto! Você percebe alguma semelhança entre a proposta de Dante e algumas sugestões recentes para a Educação brasileira contemporânea?
ResponderExcluirRenan M. Birro
Olá Renan!
ExcluirVejo sim e infelizmente os pontos negativos. Com as devidas diferenças históricas e sociais, a concepção do conhecimento sendo um "banquete" a ser repartido por aqueles que estão na mesa, e as migalhas que sobrarem serem distribuidas aos famintos é um discurso e prática já frequente quando se trata de medidas para melhoria educacional, e recentemente se expandiu. A fala do ex-ministro da educação Ricardo Velez, em que o mesmo diz que a educação de nivel superior não deveria ser para todos e somente a "elite intelectual " poderia acessa la pois teria condições econômicas para tal; ou a PEC 241 que na argumentação no corte e congelamento orçamentário da educação, coloca os espaços de ensino marginais aos grandes centros urbanos (ensino rural, indígena e quilombola) e de indivíduos com necessidades especiais como primeiros na linha de corte, pois já estão "naturalmente desfavorecidos ", sendo assim a prioridade os espaços "mais nobres" do ensino público.
Já as restrições ao ensino ser guiado por instituições religiosas e a ampliação da educação para os que não possuem facil acesso, são propostas apresentadas por Dante que vejo os órgãos e gestores públicos indo no sentido contrario, infelizmente.
Ronny Costa Pereira
Boa Tarde Ronny, Parabéns pelo texto! Uma vez que a educação na Idade Média era limitada a um grupo especifico de indivíduos, se caracterizando por ser excludente, é possível afirmar que a mesma servia como forma de controle social naquele determinado contexto?
ResponderExcluirAlessandro Lopes Campelo
Olá Alessandro!
ExcluirConsidero sim, a educação foi um importante mecanismo de controle social durante a idade média. Seja por meio da Igreja que possuia o monopólio da leitura e escrita dos textos sagrados, até a nobreza que resguardava titulos e cargos de importante grau social (juiz, medico, lorde) para aqueles que possuiem conhecimento formal da escrita e leitura. Com uma população extretamente reduzida de letrados e poucas formas de acesso, a educação formal foi um forte regulador social .
Ronny Costa Pereira
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